APL 3041 Lenda da Cristã Enamorada
A gente da Vieira do Minho tem sempre lendas para contar. Embora a tradição tenda a morrer lentamente na boca da gente nova destes tempos, os antigos, que sempre gostaram de históras, contam-nas, relembram-nas com os olhos postos no passado e uma pontinha de saudade na voz. Foi da boca de uma mulher simples do povo que esta lenda chegou ao meu conhecimento. Nasceu numa pequena povoação chamada Almas, na freguesia de Salamonde.
Eis a lenda.
Foi há muitos anos que isto se passou. Naquele lugar existia um senhor poderoso que tinha à sua guarda uma sobnnha de rara beleza, orfã de pai e mãe. Não possuía grande fortuna, a donzela, mas, como vivia com o tio, usufruia dos bens da família. Pensavam casá-la com alguém de fortuna, pois beleza tinha a jovem para dar em troca.
Ora, certa vez em que a donzela saiu para dar um passeio, afastou-se um pouco, sem querer, e foi até à beira do rio Cávado. Era muito cedo ainda. Montava a cavalo, embora isso não fosse tido por muito próprio entre os seus. Mas ela adorava correr pelos campos e deixar que o vento lhe desmanchasse o penteado. Corria pela margem do rio quando algo lhe despertou a atenção. Um jovem estrangeiro aproximava-se da água, para se lavar ou para beber. Ao sentir o tropel do cavalo, fez um movimento, como a tentar esconder-se. Mas ela deu de esporas, e em poucos segundos estava junto do estrangeiro. Olharam-se sem falar, ambos assombrados. Ele, vendo uma mulher tão bela, cabelos soltos ao vento, montada num cavalo branco de crinas longas e sedosas. Ela, olhando aquele homem jovem, de feições másculas e porte altivo, rosto trigueiro, olhos negros e olhar profundo. A jovem desmontou. Ele tentou ajudá-la, como se tivesse combinado aquele encontro. Sorriam. Mas quando ele falou, ela percebeu o seu sotaque de estrangeiro. Perguntou-lhe o desconhecido:
— Donde vens, tão bela e a estas horas matutinas?
Prontamente chegou a resposta:
— De minha casa. Faço este passeio todas as manhãs.
— Todas?
— Sim. Apenas não costumo vir até tão longe.
— Bem me parece. Era impossível passares por aqui sem te ver!
— Moras nestes sítios?
— Estou, há pouco tempo, em casa de um lenhador.
— Mas a tua aparência não é de quem costuma habitar o bosque!
— E tens razão.
— Como te chamas?
— Amed-Ben-Ali.
— E que fazes nestes lugares?
— Preparo-me para falar ao alcaide destas terras.
— E que pretendes do alcaide?
— Que ele leve um recado ao rei de Portugal.
— Um recado de quem?
— Do meu rei.
Ela ficou a olhá-lo. Indagou:
— És mouro?
— Sou.
— Eu sou cristã. Chamo-me Violante e sou sobrinha do alcaide que procuras.
O rapaz sorriu.
— Foi Alá quem te enviou!
— Porque dizes isso?
— Porque acabara precisamente de lhe pedir que me inspirasse um meio de me apresentar sem complicações.
— Mas tu... um mouro... sozinho por estas terras… não tens medo de te expor?
— Foi-me pedido que o fizesse. Se me negasse, seria cobardia.
— E se morresses?
— Seria pela nossa causa, que neste momento não vos prejudica. Venho propor uma aliança.
— Com o meu rei?
— Sim. O teu rei está em guerra com Castela e o meu com outro da minha raça. Se houvesse uma aliança, os nossos inimigos de agora tomariam uma atitude mais comedida.
Violante ficou um momento pensativa. Depois exclamou:
— Tens razão. Vai buscar o teu cavalo e vem comigo.
Quando o jovem mouro chegou ao lado de Violante, causou escandalizada sensação. Mas ela falou alto, com energia:
— Afastai-vos! Ide chamar meu tio para que receba dignamente um alto dignitário do rei Almotamid!
Houve um momento de expectativa. Mas Violante insistiu:
— Ide! Por que esperais?
Correram uns a avisar o alcaide, enquanto outros ajudavam os recém-vindos a desmontar e a guardar as suas montadas. Serenamente, com uma dignidade que encantava o jovem mouro, Violante conduziu o seu hóspede para o salão de recepções.
Embora fosse mouro e portanto inimigo, o jovem Amed-Ben-Ali foi bem recebido pelo alcaide. Convidou-o mesmo, como era da praxe, a ficar alguns dias a descansar antes de voltar aos seus. Assim, Amed e Violante encontravam-se muitas vezes e conversavam muito. Para a jovem, tudo quanto o mouro dizia tinha especial encanto. Apenas divergiam, sem altercar, no respeitante à religião. Para qualquer deles, apenas o seu Deus era o verdadeiro. Mas, porque aí não havia acordo, deliberaram não mais tocar em tal assunto.
Os dias iam passando cheios de encantamento para os dois jovens, que se amavam já sem se atreverem a confessá-lo. De tal forma se reviam nos gestos e palavras de cada um, que o próprio alcaide o notou e teve medo das consequências. Assim, embora com os modos mais corteses, lembrou a Amed que ia sendo tempo de partir e levar a mensagem do rei de Portugal ao seu senhor.
Acordaram do sonho em que se haviam envolvido, os jovens enamorados. A realidade batia-lhes à porta com o seu manto de rija verdade. Amed teria de partir na manhã seguinte. Afligiu-se Violante. E para não chorar diante dos seus nem do jovem, que até aí nada lhe dissera sobre o efeito que ela lhe causara, a sobrinha do alcaide montou a cavalo e fugiu para a beira do Cávado, onde semanas antes encontrara aquele que seria o amor da sua vida.
Desmontou e sentou-se junto a uma árvore. Pouco tardou em ouvir o tropel de outro cavalo. Era Amed que chegava. Tentou limpar as lágrimas que lhe corriam pelo rosto. Ele, vendo-a, não se conteve:
— Querida! Como poderei deixar-te? A minha vida já nada vale sem ti!
Ela tentou reagir.
— Pois tens bom remédio: fica!
— Teu tio marcou-me a hora do meu regresso. Não me quer para teu esposo!
— Pediste-lhe?
— Nem me atrevi!
— Pois renega a tua religião, baptiza-te, e talvez ele seja benevolente.
— Os meus não me perdoariam. Perdia tudo quanto tenho e não ficava à altura de merecer-te.
— Que queres então?
A medo, Amed pediu:
— Violante! Se tu quisesses... fugirias comigo e renegavas tu ao teu Deus!
Ela assustou-se.
— Não posso!
— Porquê?
— Porque o meu Deus me castigaria!
Ele beijou-lhe as mãos, suplicante:
— Exageras! Que os teus nos perseguissem, acredito! Mas o teu Deus, que poderá contra o meu?
Ela meneou a cabeça.
— Não! Tenho medo! Deus castigar-me-á, pressinto-o!
— Não me amas, afinal!
Violante olhou o jovem mouro.
— Amed, não consinto que repitas isso! Por ti daria a vida! Mas receio tanto pela minha alma!...
Ele insistiu:
— Querida! Nada de mau poderá acontecer-nos. Alá há-de proteger a nossa fuga, acredita! E seremos tão felizes os dois, no castelo onde vivo! Serás a mais feliz de todas as mulheres!
Violante lutava consigo própria.
— Não me tentes, Amed! Não posso!
— Queres, então, que não mais nos tornemos a ver?
— Fica tu!
— Não o farei. Por ti... e por mim!
A jovem deixou que as lágrimas corressem livremente. Ele consolou-a, beijando-a com ternura.
— Querida, pensa bem! Temos o futuro à nossa frente! Seremos o par mais amante do mundo!
Ela deixava-se beijar. Precisava desse calor para se convencer. De súbito, afastou a cabeça do seu bem-amado. Falou, nervosa:
— Amed, convenceste-me! Mas, se queres que parta contigo, encetemos já a caminhada.
— Pois partamos!
Foi com visível alegria que o jovem agarrou as mãos da sua amada.
— Verás como vais ser feliz! Partamos, que a noite pode encontrar-nos na floresta.
Violante apertou nas suas mãos a cabeça de Amed, exclamando:
— Que o teu Deus me salve, porque o meu vai ficar zangado!
Depois pediu, frívola:
— Deixa-me ir lavar o rosto ao rio. Tenho a cara suja de lágrimas e do pó do caminho.
Ele riu, maravilhado.
— Vaidosa! Olha que o tempo urge!
Ela inclinou-se na margem. Estendeu um braço a encher a mão feita em concha. De súbito, deu um grito. Um pé resvalou na erva espezinhada e húmida, e Violante caiu ao rio. Logo Amed se desembaraçou das roupas mais pesadas, para salvar a rapariga. Mas as águas agiram como mãos misteriosas que a tivessem puxado e levado. O corpo de Violante desapareceu como por encanto. Por mais pesquisas que fizesse, por mais que Amed gritasse. Desesperado, só o eco respondia aos seus lamentos. Tudo fora em vão. Escorrendo água, sentado à beira do rio, Amed fazia esforços por atinar com a realidade. E foi então que ouviu, em pensamento, a voz da sua amada dizendo-lhe: «Tenho medo! Deus castigar-me-á, pressinto-o!»
Horrorizado, Amed caiu de joelhos, suplicando:
— Ó Deus Verdadeiro e Único! Se podes restituir-me a minha bem-amada, eu te prometo que só a Ti amarei! Se a não podes fazer voltar à vida, então leva-me para onde a levaste e deixa-me ficar a seu lado, eternamente!
Amed calou-se. As águas marulharam um sussurro que Amed não compreendeu. Deixou-se ficar sentado, com as roupas coladas ao corpo, olhando as águas do rio. Meditava. Compreendia que o Deus que Violante adorava a tinha castigado da sua falta de fé, e simultaneamente o tinha iluminado na Verdade da religião cristã. Voltou a pedir.
— Ó Deus! Vou encetar sozinho a minha caminhada. Mas vou fazê-la suportando a fome e a sede o mais que me for dado suportar. Caminharei de dia e de noite, a pé, como penitência dos meus pecados e dos pecados da minha Violante. E quando achares que nos podemos reunir, leva-me para onde a levaste, ó Deus! E dá-me o prémio do Teu perdão!
Depois, acariciando o seu cavalo, companheiro de tantas horas, começou a marcha até onde Deus quisesse.
Havia dez dias que Amed iniciara a sua caminhada a pé e sem recursos, a caminho dos seus. Mas o esgotamento físico a que chegara era tal que se deixara cair numa gruta, crente que nesse mesmo dia a sua vida iria chegar ao fim. Da gruta escorria água fresca, que por penitência não usou para se dessedentar. Pediu uma vez mais perdão a Deus de ter sido o causador da morte de Violante e implorou:
— Sê complacente e não demores a nossa reunião! Quero voltar a estar com Violante, mas dentro da tua Lei, ó Senhor!
Então, como por encanto, um homem novo entrou na gruta. Perguntou-lhe:
— Quem és?
— Sou um mouro penitente que espera a misericórdia do Deus Único!
Sorrindo, o homem novo exclamou:
— Amed! Vou baptizar-te, para que possas prosseguir viagem. Entrarás no reino de Deus com o nome de Rafael!
E dizendo isto pegou numa pedra em feitio de concha, encheu-a da água que corria da gruta, despejou-a na cabeça do mouro e disse:
— Rafael! Eu te baptizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo!
Desapareceu o homem novo, tal como havia surgido. E, pouco tempo depois, Rafael entregava a alma a Deus, para que a levasse para junto da de Violante.
Diz ainda a lenda que a água desta gruta, situada no distrito de Vila Real de Trás-os-Montes, cura os males daqueles que sofrem por muito amarem.
- Source
- MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume V, pp. 323-328
- Place of collection
- Vieira Do Minho, VIEIRA DO MINHO, BRAGA