APL 1306 O sonho de Heduviges
No fim do século dezasseis, mais precisamente em mil quinhentos e oitenta e oito, na ilha Terceira, vivia Heduviges, uma graciosa rapariga de estatura média, cabelos abundantes e negros, olhos rasgados, doces e inteligentes. O pai era um comerciante bem sucedido no negócio da urzela e do pastel. Obtivera também de El-rei D. Sebastião o monopólio, nos Açores, do comércio do cravo, pimenta e canela da India, pelo que possuía uma riqueza avultada.
Heduviges tinha tido a possibilidade de ser primorosamente educada no Convento da Esperança, mas completara a sua aprendizagem com o tio Zózimo, pintor educado em Florença. O jovem pintor gostava de entreter-se com a sobrinha, contando-lhe grandes sucessos sobre a adivinhação do futuro ou simplesmente satisfazendo nela um estranho gosto pelas flores.
Um dia, Heduviges apareceu muito preocupada e, confiando no tio como num amigo, contou-lhe em voz aterrorizada um sonho terrível:
— Esta noite sonhei que viajava numa paisagem nocturna, debaixo dum bosque de chorões, à margem de um terrível ribeiro formado por lágrimas. Depois, inesperadamente, o bosque transformou-se em salgueiros e o ribeiro em fonte de alegria. Para o lado da foz apareceu a passear um cavaleiro de expressão jovial e atraente.
Heduviges lamentava-se de saber tanta coisa, mesmo de ciências ocultas, mas não poder explicar o sonho, assim como o estranho cantar de galo que ouvira de madrugada.
— Posso afirmar-te que teu sonho não é de mau agouro. Prediz horas de amargura, seguidas de dias de felicidade - assegurou o tio Zózimo.
Heduviges ficou mais sossegada, mas sentia o sonho como um presságio e uma profunda amargura dominava-a.
Na, noite seguinte, em pleno Agosto, quando a lua iluminava o mar de um tom prateado e um ventinho do ocidente bafejava a terra, uns gritos agudos atroaram toda a casa, ecoando no jardim onde Heduviges tocava e cantava uma doce canção.
— Piratas! Corsários! — alguém gritou.
A rapariga correu e viu o pai e três escravos negros amarrados pelos assaltantes e ainda um criado caído morto. Os restantes piratas roubavam tudo o que podiam e, agarrando Heduviges, levaram-na para bordo.
O navio dos piratas, carregado de riquezas, velejou imediatamente para leste. Próximo da ilha de S. Miguel, quando o sol despontava no horizonte, uma urca espanhola aprisionou, numa manobra rápida, o navio pirata, enforcando sem demora os tripulantes.
Heduviges rezava e chorava, mas o jovem capitão, Nicolau, tranquilizou-a e prometeu tratá-la com todo o respeito e dignidade. Conversaram longo tempo e logo Nicolau se sentiu enamorado pelo olhar doce da jovem.
Rumaram para Espanha e a jovem terceirense finalmente reconheceu em Nicolau o cavaleiro misterioso do sonho e no parque dos salgueiros identificou a quinta do jovem capitão em Andaluzia.
Em Abril do ano seguinte realizou-se, em Sevilha, com grande luxo, o casamento de Heduviges com Nicolau, o jovem que lhe aparecera num sonho estranho.
O sonho de Heduviges realizou-se porque os sonhos não mentem, mas indicam o caminho do futuro a quem os sabe interpretar.
- Source
- FURTADO-BRUM, Ângela Açores: Lendas e outras histórias Ponta Delgada, Ribeiro & Caravana editores, 1999 , p.134-135
- Place of collection
- Angra (Sé), ANGRA DO HEROÍSMO, ILHA TERCEIRA (AÇORES)