APL 2732 Lenda do Santo de Má Cara
Manhã bonita, a desfiar-se em luz. Manhã suave, a oferecer esperanças. Manhã tranquila, quase gémea do sonho. Talvez por isso mesmo, o jovem Macário espreitou preguiçosamente o dia no seu despontar. Não corria viração. Apenas mais uma promessa de calor, de sol ardente. Macário sorriu. O calor não o abrasava. Gostava do riso franco do Sol, mesmo quando os outros se queixavam de ser quente em demasia. Com os dias tristes é que Macário não se entendia bem. Tinha um temperamento alegre, um ar sadio. Sim, era jovem e forte. E feliz, também. Apenas remediado, podia considerar-se riquíssimo, afinal, pois gozava das simpatias gerais da aldeia e dos lugares em redor.
O jovem Macário abriu a porta de mansinho. Com vagar cauteloso. Os pais dormiam ainda e ele não os desejava acordar. Se tal acontecesse, teria de mentir-lhes, mas detestava a mentira.
Já com os pés no atalho que o levaria à gruta da montanha onde habitava o velho mágico — o Feiticeiro, como lhe chamavam — Macário tornou a olhar a sua casa. Sorriu de novo. Ninguém suspeitaria da sua deliberação. Porque não havia ele de ouvir também o velho da montanha?
O pai troçava das suas profecias e a mãe punha sempre no rosto um ar de aflitiva interrogação, quando lhe falavam nele. Mas o jovem Macário estava disposto a subir a montanha enquanto a luz do dia a descia. Queria saber... Queria saber coisas, como os outros da sua idade já sabiam!
Macário depressa chegou junto da gruta. Parou um momento. Por fim decidiu-se e entrou. Um velho quase andrajoso pareceu despertar de um sono leve ou de alguma meditação. Olhou com vagar e intensamente o matutino visitante. Este desviou o olhar num movimento nervoso. Mas o velho perguntou, com voz aflautada:
— Que pretendes deste teu pobre irmão?
Macário recuperou ânimo. O ar da manhã incitava-o a grandes feitos.
— Gostaria de conhecer o meu destino. Sei que vossemecê… tem dito coisas acertadas aos rapazes da minha aldeia...
O velho teve uma espécie de risada, mas ficou subitamente sério. Abanou a cabeça e sentenciou:
— A curiosidade tem sido a perdição de muita gente. Vai-te... Desce a montanha, ignorante como a subiste, e espera que o destino te procure.
Macário olhou o velho com perplexidade. Tentou, numa obstinação:
— Mas...
O feiticeiro suspendeu-lhe a frase com um gesto enérgico. E acrescentou:
— Não te apresses... O destino surgirá no momento oportuno — e cumprir-se-á!
Macário aproximou-se do velho. No seu rosto havia agora uma expressão forte, resoluta.
— Senhor... porque não me atende? Eu gostava de saber qualquer coisa do que estivesse para vir...
O velho meneou a cabeça em silêncio.
Macário insistiu com vigor.
— Por exemplo... Ao Zé do Ti Júlio, vossemecê disse-lhe que ele havia de sair da terra... e é que saiu mesmo...
Novo encolher de ombros.
— E isso o que tem? Já te disse, rapaz, que tudo se cumprirá à risca!
Quase a medo, Macário perguntou:
— Casarei?
O velho sorriu.
— Sim... casarás...
— Aqui?
— Não! Tentarás fugir... mas tudo será inútil.
O jovem olhou o velho com surpresa.
— Tentarei fugir... a quê?
— Ao teu fado!
Na ânsia de desvendar o mistério, Macário fez outra pergunta:
— Ficarei doente?
A resposta surgiu rápida.
— Gozarás de boa saúde...
A curiosidade era ferro em brasa no peito de Macário. Perguntou, com nova ansiedade na voz:
— Mas então... porque fugirei?
Sentenciosamente o velho voltou a repetir:
— Para impedir que se cumpra o que terá de cumprir-se!
O jovem cerrou os dentes. Começava a enervar-se.
— Vossemecê aflige-me! Que irá acontecer-me? Diga por uma vez! Sou homem para ouvir o que me estará reservado!
Com vagar impressionante, o velho da montanha declarou:
— Jovem impaciente! Queres então saber a verdade? Pois escuta: matarás os autores dos teus dias!
Macário recuou como se de súbito tivesse descoberto o próprio Inferno. E gritou quase:
— Eu?... Matar os meus pais?
Sempre com vagar enervante, o velho reafirmou:
— Sim... Matá-los-ás e à machadada!
Ouviu-se um grito de revolta:
— Nunca! Nunca, seu velho bruxo! Ouviu bem? Sou tudo para eles e a minha alegria depende da sua alegria! Vossemecê mente! Mente!
Sem se alterar, o velho da montanha repetiu com tranquilidade implacável:
— Matá-los-ás!
Então, como doido, Macário voltou costas à gruta e correu pela montanha, na ânsia de se atordoar. A última frase do velho ficara a sussurrar-lhe aos ouvidos como sentença infernal. E ele não queria, não podia compreender tal destino. O velho feiticeiro tinha mentido, com toda a certeza! Mas… e se fosse verdade?
Quase sem dar por isso, encontrou-se de novo em casa. A mãe, já levantada, olhou com surpresa.
— Filho! Que tens? Onde foste?
Sem responder, Macário apertou-a nos braços e soluçou perdidamente...
Duas semanas passaram. Macário não comia, não dormia, não ia ao campo trabalhar. O pai resolveu-se a abordá-lo.
— Macário! Já és um homem e na graça de Deus. Porque não contas aos teus pais o desgosto que te amofina?
Macário suspirou. Era-lhe impossível contar a verdade. O pai insistiu:
— Vamos! Somos todos teus amigos e só queremos o teu bem. Um homem é um homem e não um bicho qualquer que se arraste pela terra! Conta lá o que te atormenta. A tua mãe opina que se trata de saias... Mas, caramba, quem é a cachopa que despreza um rapaz como tu?
Macário levou as mãos ao rosto. A situação começava a ser insustentável.
Vendo no silêncio uma anuência, o pai de Macário bateu-lhe amigavelmente num ombro.
— Come, rapaz, come e bebe, que tudo se há-de arranjar. O tempo e o trabalho são os melhores conselheiros! Anda, vem comigo para o campo. Faz essa vontade à tua mãe!
E Macário foi para o campo. Ao pegar no machado, porém, as mãos tremeram-lhe e deixou-o cair por terra. Os outros homens olharam-no com estupefacção e alguns murmuraram baixinho.
— Parece que traz bruxedo!...
Na noite seguinte, o vento passou por ali, assobiando a sua cantiga de sempre. Abanaram-se as ramadas das árvores, como que a cumprimentá-lo. Anicharam-se os passarinhos nos seus esconderijos. O jovem Macário ouviu naquele assobio um som funesto, que o pôs como louco. Então, amedrontado com o triste agoiro, Macário resolveu fugir, deixar para sempre a casa paterna, o carinho e calor que nela recebia, e tentar sufocar esse destino que lhe fora profetizado. Cruelmente. Injustamente.
Pondo sobre os ombros o capote, aconchegou-o ao corpo e partiu em silêncio. Tremiam-lhe os lábios de comoção, tremiam-lhe as pernas, que não desejavam arredá-lo do seu lar. Mas o vento continuava a assobiar cantigas absurdas e as ramadas das árvores, humildes e frágeis, entregavam-se sem luta ao vento que passava...
Três Verões e três Invernos passaram sobre essa noite. Macário fizera-se almocreve. Ganhava bem o pão de cada dia. Todavia, a saudade dos pais, a certeza da dor que lhes causara ao fugir-lhes, roubaram-lhe para sempre a alegria. Um pensamento fixo dava-lhe contudo forças para esse afastamento: vencer o destino!
Entretanto, muita coisa mudara na vida de Macário. Casara havia já um ano. Encontrara em Aninhas um pouco do conforto moral que deixara. Ela amava-o profundamente. Nada conhecia do seu passado. Mas a certeza de que algo atormentava o seu homem não a largava.
Certa noite, ao serão, Aninhas tentou uma vez mais penetrar no mistério que punha sombras no rosto do marido. E perguntou, solícita:
— Que tens, homem? Ficas de olhar parado sobre o lume, como se visses outra lareira em vez da nossa!
Ele estremeceu. Depois, tentou gracejar.
— Não tenhas ciúmes, Aninhas!
A rapariga fitou-o, subitamente séria.
— Tenho ciúmes, sim! E preciso que o saibas de uma vez para sempre! Tu vieste de outras terras... Não te conheço parentes nem amigos... Pareces um fugitivo...
Macário suspirou fundo. Pela primeira vez respondia à mulher quando ela o abordava sobre a sua tristeza.
— Sou um fugitivo, sim! Como vês ando de terra em terra para ganhar o meu pão. Mas olha que não cometi nenhum crime!
Havia tanta amargura na voz de Macário, que a pobre Aninhas apressou-se a sossegá-lo.
— Também não digo isso, homem!... No entanto... não és alegre como os outros da tua idade! Andas sempre a remoer tristezas...
Chegou-se mais a ele. Baixou a voz, numa carícia.
— Diz-me com sinceridade: não gostas de mim?
Macário apertou a mão da companheira, que procurara as suas.
— Pateta! Se não gostasse, porque havia de casar contigo? Ninguém me obrigou...
Aninhas suspirou.
— Eu sei! No entanto... parece que trazes no peito saudades de alguém...
Num murmúrio irreprimível, Macário deixou escapar uma confissão:
— E trago... trago saudades comigo...
Precipitada pela ansiedade, Aninhas perguntou:
— Doutra mulher?
— Não: dos meus pais.
Foi a vez de Aninhas ficar surpreendida:
— Tens pais? Tu? E nunca me falaste deles!... Porque não vamos vê-los?
De um pulo, Macário levantou-se:
— Não! Não quero!
Ela mordeu os lábios, falou a medo.
— Zangaste-te com eles? Deixa lá, homem! Os pais perdoam tudo.
Macário gritou:
— Cala-te! E não faças mais perguntas, se queres continuar a ver-me!
Aninhas olhou o marido. Viu a sua expressão de horrível sofrimento e teve medo. Calou-se, Macário levou então as mãos ao rosto. Voltou a sentar-se e disse, já mais calmo, desviando o olhar da sua companheira:
— O meu destino será viver longe deles. E viverei!
Quando o outro Invemo chegou, Aninhas teve, certa tarde, uma grande surpresa. Alguém batia à porta da sua modesta casa. Foi abrir e viu dois velhos que a olhavam por entre lágrimas. Foi o homem quem falou primeiramente.
— Disseram-nos que vive aqui um homem chamado Macário...
— Sim... é o meu marido.
O velho tornou, com voz trémula:
— Pois nós somos os pais de Macário!
Os olhos de Aninhas abriram-se num espanto.
— Os pais de Macário? Aqueles de quem ele traz tantas saudades? Oh, meu Deus, entrem... Entrem e sejam bem-vindos!
Abraçaram-se, chorando. Depois, o homem confessou amargamente:
— Não sei o que aconteceu ao nosso filho. De repente deixou de comer, de trabalhar, de dormir... Quase não falava com a gente e muitas vezes o ouvimos chorar de noite! Ele era tão bom, tão obediente, tão alegre... Não havia outro igual a ele!...
A mãe recomeçou a soluçar baixinho. E Aninhas chorava também, enquanto dizia:
— Mas agora tudo acabou! Quando ele voltar e os vir aqui, vai ficar radiante!...
E olhando com mais descanso os pobres velhos;
— Oh... desculpem! Estão tão molhados! Vou arranjar roupa minha e do Macário para lhes dar. Depois bebem um caldinho bem quente e metem-se na nossa cama. Quando ele chegar, eu me encarregarei de os acordar.
Os velhos sorriram. Era boa a mulher do seu filho! Que dia feliz!
E enquanto comiam contaram a Aninhas todo o seu esforço para tornar a encontrar, morto ou vivo, o filho desaparecido. Aninhas olhava-o enternecida e repetia baixinho:
— Como é grande o amor dos pais!
Depois encaminhou-os até ao quarto e fez com que se deitassem, trazendo à mãe de Macário a sua melhor camisa. Refeitos do frio, da fome e do cansaço que traziam, os pobres velhos acabaram por adormecer profundamente.
A boa Aninhas tratou de ir amassar mais pão. E dirigiu-se ao forno, deixando apenas encostada a porta do quarto onde dormiam os pais de Macário...
Ao cabo de um dia de trabalho intenso, Macário chegou a casa. Viu logo a porta do quarto encostada — coisa com que sempre embirrava — e entrou decidido a censurar a mulher. Mas entrou, perplexo. Perplexo e desorientado. Ouvia ressonar. Sim, alguém ressonava no seu quarto, envolto agora pela semiobscuridade. Alguém ressonava na sua própria cama!
Com o coração a bater sem compasso, Macário olhou o leito, desvairado. E viu logo a camisa de laços e fitas que ele comprara na feira para Aninhas!
Um clarão de fogo rasgou-lhe o cérebro. Havia outro vulto na cama junto de sua mulher. Que miséria de vida! De cabeça perdida, viu na parede, pendurado o velho machado de rachar lenha, que parecia gritar-lhe vingança... Pegou nele, numa fúria, correu sobre o leito e desfechou vários golpes sobre os dois vultos que dormiam. Não mais o desonrariam!
Nesse mesmo momento, escutou um grito de pavor. Voltou-se, célere...
E Aninhas caiu no chão, desmaiada, mesmo a seus pés...
Por instantes, Macário ficou sem se mexer, olhando para a cama e para Aninhas. Por fim resolveu-se. Em gesto de autómato, levantou o lençol que cobria os dois corpos, barbaramente assassinados por ele, e descobriu a verdade. A horrível verdade!
Macário atravessou a aldeia, desvairado, gritando até enrouquecer:
— Matei-os! Matei-os!...
Dias e dias andou por vales e montes, sem comer, sem dormir, até cair exausto. Macário não era o mesmo homem.
Abriu uma cova num local deserto, entre duas rochas, e enterrou-se até à cintura, disposto a sofrer uma penitência terrível.
Apenas se alimentava das ervas que ficavam ao alcance do seu braço. Martirizava-se voluntariamente, como castigo do seu crime e alívio do remorso que o atormentava.
Um dia passaram por ali dois caçadores que o viram naquele estado. E logo foram espalhar a notícia, fazendo com que o povo se alvoroçasse. Os mais decididos meteram-se a caminho. E escutaram da boca de Macário estranhas pregações, em que ele os exortava à prática do Bem, condenando o Mal sob todas as suas formas. Propagaram tais palavras e Macário — o Homem de Má Cara, como lhe chamavam, dado o seu aspecto selvático e prematuramente envelhecido — não mais deixou de ter fiéis devotos à sua volta.
Sete anos viveu assim. Sete anos de penitência atroz. Sete anos de implacável agonia. Sete anos de trágica expiação, durante os quais se transformou quase num bloco de pedra e poeira, onde só os olhos brilhavam e de onde as palavras saíam como que em gemidos de alma.
Sete anos viveu assim. Contando aos outros o mal que fizera e pedindo-lhes que não lhe perdoassem, porque ele não merecia perdão.
Sete anos viveu assim. E de tal forma a sua história se espalhou pelos arredores, que aquela terra onde se enterrara vivo passou a ser conhecida como a Terra do Homem de Má Cara...
Um dia, morreu. Sem um ai, sem um suspiro, sem um queixume, na cova onde ele próprio se enterrara. Mas os fiéis que o escutavam não abandonaram o local. Pelo contrário, vieram cada vez mais numerosos, para pedirem protecção àquele que tanto sofrera e lhes fazia tão estranhas pregações.
E, aos poucos, começaram a surgir novas de milagres. Novas que cresceram, se repetiram, se multiplicaram. De tal forma e com tal intensidade, que daí em diante a terra mudou de nome: passou a chamar-se a Terra do Santo de Má Cara.
E ainda hoje o povo da Beira Baixa afirma devotadamente que São Macário — o Santo de Má Cara — cura sete males, um por cada ano do seu martírio. E vai todos os anos, em romaria, agradecer e propiciar a sua santa protecção.
- Source
- MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume I, pp. 363-369
- Place of collection
- COVILHÃ, CASTELO BRANCO