APL 2709 Lenda do Bom Jardim dos Coelhos

Levemente. Docemente. Suavemente. Uma aragem fresca veio saudar os cabelos do jovem fidalgo Gonçalo Pires Coelho. Com passo lento, ele afastou-se do grupo formado pelos seus irmãos e primos. Gostava da solidão quando o ruído mundano chamava mais alto que as preocupações do seu espírito. A tragédia que enlutara o solar dos Coelhos, outrora tão vibrante de alegria, pesava ainda no seu coração e no seu cérebro. Os anos não apagam os grandes feitos, sejam eles bons ou maus. Antes os conservam como que imunizados da própria corrupção do tempo.
 
Quando seu pai passeava por ali de mão dada com ele, ainda infante, dizendo-lhe o nome de cada árvore, de cada pequena planta, das borboletas multicores, dos pássaros esquisitos que buscavam o abrigo dos recantos amenos do solar, chamando poeticamente a tudo aquilo o seu «Bom Jardim», bem longe estava ainda da tragédia que então viria a ocorrer. Porque se importaria seu pai tanto com os negócios do Reino? Porque pusera a independência da nação acima da felicidade dos filhos? Deixasse Inês de Castro viver e vivesse ele também a sua vida!...
Gonçalo passou a mão pela testa. Meneou a cabeça como a pôr em fuga os pensamentos que o torturavam. Respirou fundo, enchendo os pulmões desse ar puríssimo das terras de Basto. Mas os pensamentos não se sobressaltaram e continuaram fixos no cérebro do filho primogénito de Pêro Coelho.
Continuou a caminhada. Só e devagar. O dia, embora de Inverno, estava excepcionalmente bonito. Bonito e agradável. Agora o Sol, quase no seu declínio, punha manchas de luz aqui e além, coadas pelo intervalo das árvores robustas. Estava a afastar-se de casa e deixara os seus irmãos e primos para trás. Mas eles não tinham as suas preocupações. O único que a ele se assemelhava era seu irmão Egas. Egas era o mais novo da família. Viria a ser um grande homem, tinha a certeza. Porém era ainda tão jovem...
Suspirou de novo. Sentia saudades de seu pai e nesse dia mais que noutro qualquer. Porquê? Seria o reflexo da alegria de seus primos que lhe produzia essa melancólica tristeza, esse desejo de fuga?
A morte de El-Rei D. Afonso IV fora um grito de alarme por todo aquele solar. Eles bem sabiam que D. Pedro não respeitaria a jura que fizera a seu pai de perdoar aos que instaram pela morte de Inês. Eles bem sabiam... A sua fúria não se faria esperar... E a vingança chegou. E que vingança!
De novo o jovem Gonçalo Coelho levou a mão à testa, apertando as fontes. Falou alto, embora sozinho:
— Porque me estou hoje a atormentar assim? Porquê?
Estremeceu. Um suspiro fundo fê-lo voltar a cabeça. Parecia ter ouvido soluçar baixinho. Talvez fosse o ruído das árvores, receosas da noite invernal que não tardaria. Andou uns passos mais e entrou na clareira florida que ficava ao cimo da álea dos lilases. E o seu coração quase parou. Uma dama envolta num véu espesso e cinzento parecia chorar, encostada a uma frondosa árvore. Gonçalo aproximou-se mais. Ela parecia não dar pela presença do jovem. Ele falou-lhe num tom de delicada surpresa:
— Senhora! Em que pode servir-vos o meu braço?
A dama levantou a cabeça. Sem pressas. Altivamente. E logo a baixou de novo, num gesto súbito. Gonçalo não pôde ver-lhe a expressão do rosto com nitidez. Mas a sua voz, estranhamente em surdina, chegou aos seus ouvidos:
— Deixai-me só, jovem fidalgo! Preciso descansar.
Ele porém insistiu, levado pela surpresa de ver no seu solar uma dama desconhecida:
— Perdoai, mas… gostaria de saber como chegastes até aqui.
— Andando… como vós!...
— Sois visita da nossa casa?
— Conheço-vos há muito!
— E poderei saber quem sois?
A dama do véu cinzento silenciou um breve instante, mas respondeu por fim:
— Dir-vos-ei apenas que alguém de vosso sangue muito mal me causou!
Gonçalo Coelho mostrou-se ainda mais surpreendido:
— Alguém do meu sangue? E quem?
A dama não respondeu. Ao longe soou uma gargalhada fresca. Ruído de vozes denunciavam a presença distante de um grupo turbulento.
Como que numa desculpa, o jovem fidalgo olhou o local donde partira a gargalhada e disse apenas:
— Brincam e riem sem preocupações... _
Voltou a dama a falar, sentenciosamente:
— A jovem que ora ri, talvez chore dentro de pouco tempo!
Gonçalo elucidou:
— A jovem a quem vos referis, senhora, é minha prima-irmã, Leonor de Alvim.
Houve um ligeiro assentimento de cabeça da parte da dama velada:
— Eu sei. E com ela passar-se-á algo de misterioso… depois de casar...
— Sabeis então que Leonor vai casar com Vasco Gonçalves Barro?
— Sim… mas enviuvará ainda donzela.
A surpresa subiu ao auge na expressão de Gonçalo Coelho.
— Que dizeis? Não pertence ao passado nem ao presente tal acontecimento!
A dama pareceu sorrir.
— Mas pertence a um futuro muito próximo.
— Como o sabeis?
— E fácil para quem vê o mundo como eu o vejo… mesmo através deste meu véu espesso...
Então Gonçalo, num impulso instintivo, avançou até junto da dama desconhecida. Mas não lhe tocou. Pediu apenas:
— Senhora! Dizei-me quem sois e porque estais aqui!
Ela não respondeu. Ergueu o busto e pareceu absorta na contemplação da paisagem. A aragem corria fresca, fazendo bater a ramagem das árvores. Gonçalo tentou quebrar o mutismo em que a sua interlocutora parecia querer refugiar-se.
— Decerto não ignorais que estais no solar da família de Pêro Coelho...
A dama fez com a cabeça um sinal afirmativo e declarou:
— Venho aqui todos os anos, neste dia.
Depois houve uma pausa. E logo uma pergunta lenta:
— Sabeis que dia é hoje?
— Se o sei! Sete de Janeiro...
A desconhecida interrompeu com um gesto a palavra de Gonçalo.
— Não vale a pena ficardes preso a dolorosas recordações. Calai então o dia de hoje. Ide folgar com vossos irmãos e primas, senhor fidalgo! Ide, Gonçalo Pires Coelho, e deixai-me só!
Gonçalo inclinou-se com galhardia.
— Senhora! De modo algum devo esquecer que estais no solar dos Coelhos, Melhor direi, como dizia o senhor meu pai, no «Bom Jardim dos Coelhos»...
— Calai-vos, por favor... Hoje é um mau jardim... Será sempre um mau jardim, no dia de hoje!
A voz dele revestiu-se de espanto sincero.
— Não vos compreendo, senhora! Pretendo apenas receber-vos como mandam as regras da fidalguia.
A misteriosa dama voltou a suspirar. Pareceu de novo interessada pela paisagem. Mas, voltando-se de repente para o jovem Gonçalo, pediu com voz ansiosa:
— Se quereis, de facto, fazer-me grande mercê, deixai-me só até ao fim deste dia. Não consenti que mais alguém venha perturbar o meu repouso. Fazei cientes disto a todos desta casa: uma vez em cada ano, durante as horas do sol-posto, virei aqui. E peço-vos por tudo: que ninguém ouse perturbar esta minha visita. Ninguém... sob pena de grandes desgraças! Sob pena mesmo do vosso solar deixar de ser um Bom Jardim e transformar-se, para sempre, num Mau Jardim...
Gonçalo olhou com assombro a dama velada.
— Que estranhas as vossas palavras, senhora! Poderei, ao menos, saber quem sois?
Numa voz repassada de sofrimento, a dama desconhecida declarou:
— Pois já que o desejais saber, senhor fidalgo... chamo-me Inês!
Um arrepio forte percorreu o corpo de Gonçalo Pires Coelho. Olhou melhor a singular figura, como a querer descobri-la através dos seus véus espessos, e pareceu-lhe encontrar traços de um rosto que vira em alguns retratos.
Inês! — pensava ele, na turbulenta confusão do seu espírito... — Seria possível? Estaria em presença de uma alma penada? Para ele, seu pai nunca fora um assassino e sim um fervoroso adorador da sua pátria, que supusera em perigo. Seu pai era recto e bom para com os outros! Se tinha insistido na morte de Inês de Castro, fora apenas para salvar dos Castelhanos o seu querido Portugal, por quem tantos heróis se haviam batido. Mas Inês, decerto, não pensaria assim. E seria mesmo Inês? Apavorado, Gonçalo Coelho fez uma longa vénia e retrocedeu sem mais olhar para trás, deixando a dama sozinha...

Momentos depois, numa das áleas floridas do jardim, avistou sua prima D. Leonor de Alvim, que se dirigia para o local donde o jovem fidalgo fugia agora. Ela foi logo ao seu encontro.
— Primo Gonçalo! Por onde andastes todo este tempo?
E reparando melhor na palidez do primo:
— Que tendes? Estais tão branco como a renda do meu vestido!
Ele tentou disfarçar:
— Na verdade… não me sinto bem! Dei hoje um grande passeio a cavalo...
Ela riu.
— Ora, ora!... Desde quando os passeios a cavalo puseram pálidos e nervosos os nossos jovens cavaleiros?...
E, maliciosa, insinuou:
— Tiveste alguma zanga com D. Branca?
Ele retorquiu, tentando recompor-se:
— Agradeço-vos o cuidado, prima Leonor, mas D. Branca e eu continuamos de boas relações. Aliás isto vai passar, à fé de quem sou! Juntemo-nos aos nossos convidados.
D. Leonor pôs-lhe a mão sobre o braço.
— Primo Gonçalo... Fazei-me uma mercê! Estou cansada de tagarelar. Vinde dar uma volta comigo. Iremos até à clareira, pela avenida dos lilases... Talvez seja a última vez que lá vou antes de casar e partir para as terras de Barroso.
Gonçalo sobressaltou-se.
— Por aí, não, Leonor!
Ela mostrou-se admirada:
—Não… porquê?
Gonçalo empalideceu.
— Não poderei explicar-vos, por enquanto... Julgar-me-íeis uma criança!
Ela riu.
— E sois… com esse medo estampado no rosto!
A troça da prima teve o efeito de uma chicotada.
— Falais em medo? Bem sabeis que é coisa que jamais existiu ou existirá na nossa família!
D. Leonor olhou-o de frente, conciliadora.
— Não vos enfadeis comigo, Gonçalo! Mas sereis decerto o primeiro a compreender e aceitar que eu estranhe a vossa atitude.
E com malícia acrescentou, sorrindo:
— Tendes ali alguém que eu não possa ver?
Gonçalo Coelho respondeu com voz firme:
— Está ali, realmente, alguém que não podeis ver, prima Leonor!
— Ah! Quebrou-se então o mistério!...
Arrastava as palavras num ar brejeiro. E perguntou, baixando a voz, como se receasse ser escutada por ouvidos indiscretos:
— Quem é ela? Guardais segredo para mim?...
Gonçalo olhou a prima, de frente, como quem toma uma desesperada resolução. E com voz segura declarou:
— Quereis saber quem ela é?... Pois é Inês de Castro!
Tal nome, pronunciado assim, naquele local e àquela hora, teve o condão de sobressaltar e fazer empalidecer também a resoluta D. Leonor. No auge da surpresa, recuou uns passos, perguntando a medo:
— Enlouquecestes, primo Gonçalo?
Ele não respondeu. Olhava-a quase duramente. A jovem enervou-se mais ainda.
— Voltemos para casa. Vou chamar vosso irmão Egas.
Ele segurou-a por um braço.
— Senhora minha prima! Se tendes por mim algum apreço, calai-vos, pois tal como vós irão supor-me louco! E eu juro-vos… juro-vos pela minha espada que vi além uma dama toda coberta de véus, a qual me pediu para não ser incomodada por ninguém, sob pena de graves acontecimentos... Sob pena, segundo me afirmou, de todo este solar se transformar num mau jardim!
D. Leonor insistiu:
— E porque dizeis... que era Inês?
— Foi ela mesma que o disse!
Aterrorizada, D. Leonor levou uma das mãos ao peito, como a conter-lhe as palpitações desordenadas. E exclamou:
— Valha-nos Deus! E que disse mais?
— Ao ouvir uma gargalhada vossa, teve um estranho comentário.
— Revelai-mo!
Gonçalo olhou-a um momento e confessou depois, num misto de segredo e de receio:
— Profetizou que ides ficar viúva… e donzela!
Leonor abriu os olhos num espanto.
— Viúva e... donzela? Tendes a certeza que vos foi dito isso?
— Ela assim o afirmou... Juro-vos!
— E que mais lhe ouvistes?
— Mais nada. Pediu-me apenas para a deixar só e não a incomodar nunca mais durante as horas do pôr do sol, todos os anos, neste dia 7 de Janeiro...
Os olhos de Leonor brilharam com fulgor desusado.
— Neste dia? Pois fazei-lhe a vontade, primo Gonçalo! Fazei-lhe a vontade! E vamo-nos antes que nos procurem! Continuo a pensar que tivestes uma alucinação... Todavia… se eu enviuvar donzela... acreditarei que Inês virá aqui todos os anos, no dia em que a mataram!...

O Sol deixou de pintar manchas de luz no solo, ao passar por entre a ramagem das árvores. E a noite de Inverno começou a descer com a pressa de quem espera há muito para estender o seu manto de negrume e de frio.
Não mais ecoaram no espaço as gargalhadas de D. Leonor e os ditos espirituosos de seu jovem primo Gonçalo Pires Coelho...
E a verdade é que o povo das redondezas, no seu tagarelar infantil, contou durante muito tempo, de geração em geração, que os senhores do solar dos Coelhos deixavam isolado certo recanto do parque no dia 7 de Janeiro de cada ano, para que o solar nunca deixasse de ser o Bom Jardim dos Coelhos!

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume I, pp. 147-152
Place of collection
Sendim, FELGUEIRAS, PORTO
Narrative
When
14 Century,
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography