APL 2414 Procissão de fantasmas
Informante: Na Quarteira não haviam luzes, as que haviam eram muito poucas e também não haviam muitos relógios (?) [entre risos], e havia somente um homem, que levantava-se àquela hora: as três ou quatro da manhã para andar gritando pelas ruas a dizer que era três horas, quatro horas para que os homens fossem para o mar. Uma noite num cruzamento aqui na cidade, em que haviam árvores e pitas; havia uma casa aqui, uma casa acolá, e nesse cruzamento o homem passou para baixo… não, passou para cima. Assim é que é! Foi para cima.
Colector: Esse cruzamento ainda existe?
Informante: Sim, esse cruzamento ainda existe. Passou para cima e quando vinha a dizer que já eram quatro horas, para irem para o mar, ou eram três horas depende, quando ele veio para baixo, por volta de umas três e meia, quatro horas, nessas horas especiais, ele vê uma espécie de procissão a passar no cruzamento. Pronto viu vários homens e mulheres e… coisa que não era normal, não é aquela hora da madrugada. E foi ai que viu, no final daquela quantidade de pessoas, mas aquilo dá uma sensação a pessoa que quase nem se movo, a pessoa parece que fica ali parada, fica ali em suspense. E então, o senhor ao ver passar aquilo tudo e quando na última pessoa que vinha atrás, vinha um menino, aí com os seus cinco anos, quatro, cinco anos, que vinha agarrando pelos calções. O homem viu aquilo mas o homem já nem sequer [aos risos] foi para baixo, o homem foi é para cima, foi para casa, fugiu com medo, é normal, naquele tempo é normal. Porque agora como há muita luz, ele existe! Que ele existe, existe! Mas como há muita luz, as pessoas não vêem! Mas há pessoas que vêem.
Colector: Então aquela procissão eram espíritos?
Informante: Pois, eram espíritos. A procissão era uma procissão de espíritos! Porque antigamente faziam muito, faziam e hoje ainda fazem, há pessoas que fazem as tais bruxarias nos cruzamentos. E então podem ter feito ali qualquer coisa e aquilo ter evocado qualquer coisa. Acontece que no outro dia de manhã, pronto o homem entretanto foi para casa. No outro dia de manhã, isso foi muito falado porque a aldeia era uma aldeia, naquele tempo com cem ou duzentas famílias nem tanto, e então foi muito falado. E tinha havido o enterro de um miúdo que tinha sido a pouco tempo, por volta de um mês ou dois, não tinha sido mais tempo. E o homem disse o que tinha visto, «e por fim o ultimo atrás daquilo tudo, por de trás daquela procissão de pessoas, ao qual eles chamavam procissão, via um miúdo agarrando nos calções. Estando uma mulher, a mãe desse tal miúdo que tinha morrido havia uns dois meses disse ao homem: «dei-me mais indicações», ao que o homem respondeu: «pois o miúdo estava assim, estava vestido assim desta maneira, e o pormenor que eu achei mais estranho, foi quando o miúdo ia agarrando os calções.»
Colector: Que lhe caiam?
Informante: Que lhe caiam! E então a mulher diz: «Ai meu Deus! Que eu tirei os calções do meu aquando do seu funeral.» E tudo o que o homem viu, deu para que a mulher se apercebe-se que sim, era o seu filho.
Colector: O facto de ela ter retirado os botões dos calções do filho poderá ter que significado?
Informante: Significa que prontos… era a miséria daquela altura, a pobreza, isto já lá vão uns cinquenta, sessenta ou setenta anos que isto aconteceu. E então essa pobreza fez com que as pessoas, sei lá, ele morreu não vai precisar de botões, ou não vai precisar de sapatos, ou não vai precisar de outras coisas quaisquer.
Colector: Por um lado poderá também querer mostrar que a mãe acreditava na vida para lá da morte?
Informante: Pois! Na vida para lá da morte. Isto é assim, as pessoas… eu acredito, mas são coisas que agente é difícil de falar com outras pessoas. Porque a pessoas que… Toda a gente acredita! Só que há gente que diz que não acredita. Mas quando a eles lhe acontecem, passam a acreditar. E muitas das vezes as pessoas não dizem, porque passam por malucas, porque passam por outras coisas que as pessoas dizem: «Ahh isso não é; isso foste tu que sonhaste, … isso era um vulto qualquer, qualquer coisa assim.»
Colector: Quando ouviu essa história que o seu avô contava, pela primeira vez, tinha medo de passar por aquela zona?
Informante: Não. Não. Nunca tive medo. Simplesmente todas as vezes que passo por ali lembro-me sempre dessa história, porque é um cruzamento… e são coisas que ficam marcadas. Lembro-me bem.
- Source
- AA. VV., - Arquivo do CEAO (Recolhas Inéditas) Faro, n/a,
- Year
- 2008
- Place of collection
- Quarteira, LOULÉ, FARO
- Collector
- Marlon Miguel Monteiro (M)
- Informant
- Ana Cristina Santos (F), 45 y.o., born at Quarteira (LOULÉ),