APL 63 As unhas do diabo
Forasteiro que, chegando a Ponte do Lima, indagar das curiosidades da terra, ouvira mencionar entre dias a das unhas do diabo; e, se tiver empenho de examinar a infernal maravilha, não perderá o tempo; que, para chegar ao sitio, ha de percorrer o caes, do qual irá gosando um dos mais encantadores panoramas de quantos imaginasse. Quando for caminhando absorto na contemplaçdo do rio e da margem fronteira, dir-lhe-á de repente o guia, apontando para uma lage da calçada: —É esta; cuidado, não a pise; que seria isso de mau agoiro. E verá então na pedra indicada umas concavidades, onde poderia ajustar-se grande mão direita.
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Uma tarde, ha muitos annos, dobravam os sinos da villa, e corria de bocca em bocca a nova de que se finára naquelle dia um celebre escrivão. Quem observasse attento o semblante dos que davam e ouviam a noticia, facilmente se convenceria de que o homem não deixava saudades. Os grupos de passeantes, que a essa hora estanciavam pela ponte e alamedas vizinhas, aproveitavam a occasião para lembrar historias de grandes façanhas, que ennegreceram durante uma longa vida a fama do defunto, entre as quaes avultava a falsificação de documentos importantes, com que haviam sido lesadas muitas familias honestas. Nas ruas tortuosas e humidas do interior da villa o mulherio cochichava ás portas, narrando essas mesmas aventuras, e condimentando-as de pragas, que na lingua d’aquella santa gente bem denotavam certeza de que para a alma do desgraçado não podiam valer suffragios.
Apesar de tantas maldições, e dos populares mais entendidos em particularidades da outra vida affirmarem nas lojas e nas praças que os despojos do escrivão não deviam ser enterrados em sagrado, não havia remedio senão dar-lhes sepultura ecclesiastica, pois era certo que fallecêra no gremio da Igreja, ao menos apparentemente.
Os frades franciscanos, que do convento de Santo Antonio apenas safam para edificar a villa com a sua humildade, não perderam o ensejo para, com novo exemplo de tão difficil virtude, ensinar os orgulhosos, que se esqueciam de uma das mais piedosas obras de misericordia; e offereceram caridosamente a sua casa, para que nella dormisse o eterno somno o official da justiça dos homens.
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Ao cair da tarde do dia seguinte rezavam os frades o officio de sepultura, e quatro leigos, afastando o panno preto que durante a ceremonia escondera a cova, desceram pausadamente o cadaver, cobrindo-o com terra, e tapando-o depois com a pesada lage. Apagaram-se as tochas, e os frades, tristes e pensativos, encaminharam-se para as suas estreitas celas.
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Á meia-noite em ponto foi toda a communidade acordada por tres fortes argoladas, que resoaram pelos claustros com desusado estrondo e demora.
Ergueu-se de salto o guardião; como que impellidos por força estranha, todos os frades se ergueram. Saindo aos longos corredores, olhavam-se amedrontados, parecendo adivinhar que alguma coisa extraordinaria se ia passar ali, e foram seguindo até á portaria, onde o guardião perguntou para fóra quem era que a taes horas da noite buscava o mosteiro.
Respondeu-lhe uma voz bem timbrada e firme:
— Reuni-vos todos na igreja e abri-me as portas; é ali que vos quero falar.
As portas, rangendo nos seus gonzos, abriram-se de par em par, e appareceu no limiar um vulto; o seu olhar era tão penetrante, que os frades, attonitos, mal poderam examinal-o, e só dois irmãos leigos, que respeitosamente se haviam afastado, perceberam que o visitador nocturno era um cavalheiro, trajando vestes de gala, mas escondendo difficilmente nas dobras da capa uns pés muito semilhantes aos da cabra.
Houve um momento de silencio, durante o qual pareceu aos dois observadores que o desconhecido, estremecendo ligeiramente, hesitava em transpor os humbraes. Foi porém instantanea aquela duvida, se a houve; entrou, e com voz solemne ordenou ao guardião que fosse ao sacrario e trouxesse á pyxide. Encaminhando-se logo para uma capellinha, que fica junto á entrada, do lado do Evangelho, approximou-se da sepultura ha poucas horas encerrada, e, cravando as unhas na campa, levantou-a sem esforço, arremessando-a com impeto; agarrou á altura do peito o corpo amortalhado, que se erguera hirto, virou-o de bruços, e, dando-lhe grande murro nas costas, fel-o vomitar a particula no sagrado vaso, nessa occasião trazido pelo velho religioso, que obedecêra ou como automato inconsciente, ou porque inspiração o houvesse obrigado.
Transmudou-se a figura do cavalheiro em vulto negro e terrivel, e, abraçando-se ao cadaver, saiu pela vidraça, que se fez em estilhas.
A communidade, prostrada diante do Santissimo, orava fervorosamente; mas os dois leigos curiosos, saindo ao adro, poderam ver com assombro que ambos os corpos, unidos numa só peça informe, passaram voando por sobre a cêrca, e, tendo crestado um cypreste que roçaram, se perderam no espaço.
Na madrugada seguinte o povo da villa juntava-se em volta da lage, que os frades haviam transportado de noite para o sitio onde hoje se encontra, e aterrado commentava o caso estupendo!
- Source
- BERTIANDOS, Conde de Lendas Ponte de Lima, Hospital Conde de Bertiandos, 1993 [1898] , p.21-26
- Place of collection
- PONTE DE LIMA, VIANA DO CASTELO
- Collector
- Conde de Bertiandos (M)