APL 3807 [A Dama de Pé de Cabra]
Este dom Diego Lopez era mui boo monteiro, e estando ũu dia em sa armada atendendo quando verria o porco, ouvio cantar muita alta voz ũa molher em cima de ua pena. E el foi pera la e vio-a seer mui fermosa e mui bem vistida, e namorou-se logo dela mui fortemente, e preguntou-lhe quem era. E ela lhe disse que era ua molher de muito alto linhagem. E el lhe disse que pois era molher d’alto linhagem que casaria com ela se ela quisesse, ca ele era senhor daquela terra toda. E ela lhe disse que o faria se lhe prometesse que nunca se santificasse. E ele lho outorgou, e ela foi-se logo com ele. E esta dona era mui fermosa e mui bem feita em todo seu corpo, salvando que havia ũu pee forcado como pee de cabra. E viverom gram tempo, e houverom dous filhos, e ũu houve nome Enheguez Guerra e a outra foi molher e houve nome dona —.
E quando comiam de suum dom Diego e a sa molher, asseentava el a par de si o filho, e ela asseentava a par de si a filha da outra parte. E ũu dia, foi ele a seu monte e matou ũu porco mui grande e trouxe-o pera sa casa e pose-o ante si u siia comendo con sa molher e com seus filhos. E lançarom ũu osso da mesa e veerom a pelejar ũu alão e ũa podenga sobr’ele em tal maneira que a podenga travou ao alão em a garganta e matou-o. E dom Diego Lopez, quando esto vio, teve-o por milagre, e sinou-se e disse: “Santa Maria val, quem vio nunca tal cousa!”. E sa molher, quando o vio assi sinar, lançou mão na filha e no filho, e dom Diego Lopez travou do filho e nom lho quis leixar filhar. E ela recudio com a filha por ua freesta do paaço, e foi-se pera as montanhas, em guisa que a nom virom mais, nem a filha.
Depois, a cabo de tempo, foi este dom Diego Lopez a fazer mal aos Mouros, e prenderom-no e levarom-no pera Toledo preso. E a seu filho Enheguez Guerra pesava muito de sa prisom, e veo falar com os da terra, per que maneira o poderia haver fora da prisom. E eles disserom que nom sabiam maneira por que o podessem haver, salvando se fosse aas montanhas e achasse sa madre; e que ela lhe daria como o tirasse. E el foi alá soo, em cima de seu cavalo, a achou-a em cima de ũa pena. E ela lhe disse: “Vẽes a preguntar como tirarás teu padre da prisom”. Entom chamou uu cavalo que andava solto pelo monte, que havia nome Pardalo, e chamou-o per seu nome. E ela meteo ũu freo ao cavalo, que tinha, e disse-lhe que este cavalo lhe duraria em toda sa vida, e que nunca entraria em lide que nom vencesse dele. E disse-lhe que cavalgasse em ele e que o porria em Toledo, ante a porta u jazia seu padre, logo em esse dia, e que ante a porta u o cavalo o posesse, que ali decesse e que acharia seu padre estar em ũu curral, e que o filhasse pela mão e fezesse que queria falar com ele, e que o fosse tirando contra a porta u estava o cavalo. E des que ali fosse, que cavalgasse em o cavalo e que posesse seu padre ante si, e que ante noite seria em sa terra com seu padre. E assim foi.
E depois, a cabo de tempo, morreo dom Diego Lopez, e ficou a terra a seu filho, dom Enheguez Guerra. E algũus ha em Biscaia que disserom e dizem hoje em dia que esta sa madre de Enheguez Guerra que este é o coouro de Bizcaia. E cada que i é o senhor de Bizcaia em ũa aldeia que chamam Vusturio, todolos deventres das vacas que matam em sa casa, todolos manda poer em ũa peça fora da aldea, em ũa pena; e pela menhãa nom acham i nada, e dizem que se o nom fezesse assi que algũu nojo receberia del em esse dia e neessa noite em algũu escudeiro de as casa, ou em algũa cousa de que se muito doesse. E esto sempre o assi passarom os senhores de Bizcaia ataa morte de dom Joham, o Torto. E algũus o quiserom provar de o nom fazer assi, e acharom-se mal. E mais dizem hoje em dia i, que jaz com alguas molheres i nas aldeas, ainda que nom queiram, e vem a elas em figura d’escudeiro, e todas aquelas com que jaz tornam escooradas.
Livro de Linhagens do Conde Dom Pedro, LL 9A4
- Source
- MATTOSO, José Livro de Linhagens do Conde Dom Pedro Lisbon, Academia das Ciências, 1980 , p.9A4
- Place of collection
- BARCELOS, BRAGA