APL 2850 Lenda da Moura que chora

Ela ia correndo. Correndo e saltando. Alegre. Despreocupada. Era a pastorinha mais graciosa das redondezas. Em toda a região do Rabaçal chamavam-lhe Rosinha. Sem mais, nem menos. Não tinha apelido. Não tinha família. Aparecera por ali um dia e por ali ficara. Depois tinham-lhe dado um rebanho para pastorear. A Comadre Josefa interessara-se por ela. Recolhera-a em sua casa. A Rosinha passara a ter um lar. Não era o seu, propriamente dito, mas isso que importava? A Rosinha gostava imenso da liberdade dos campos. Só recolhia à noite. Passava o dia deambulando com o rebanho pelas encostas floridas do Rabaçal. Principalmente em dias assim, bonitos e claros. Dias de Primavera.

Sim, ia correndo e saltando. Mas de súbito parou. Estarrecida. Trémula. Mal podendo acreditar no que os seus olhos viam...
A verdade porém é que eles viam, em cima de um grande penedo, uma donzela lindíssima penteando os seus cabelos negros e fartos com um surpreendente pente de ouro cravejado de diamantes.
Por uns momentos, Rosinha teve a ideia de estar a escutar a voz da Comadre Josefa, sua mãe adoptiva, dizendo: «... e muitas acabaram por ficar encantadas nesta terra...»
Seria aquela visão uma das tais mouras encantadas? E existiria ela, na realidade?
Rosinha já se arrependia de ter feito o caminho, desta vez, para aquele lado. Mas fora a curiosidade que a levara! A curiosidade… ou a força do destino?
De olhos pregados na estranha e bela figura que continuava a pentear-se calmamente, como se nada acontecesse, Rosinha não se atrevia a dar um passo nem a dizer uma palavra.
Foi então que a outra pareceu reparar nela.
— Aproxima-te... Não tenhas medo...
A voz parecia música. Música irresistível. E Rosinha avançou um bocadinho. Só um bocadinho.
— Quem... Quem... é... vossemecê?
Nem ela própria soube como conseguira fazer a pergunta. Tremia toda, e a sua voz também. Mas a visão bela e estranha sorriu.
— Pois não vês quem sou?... Sou a moura de Souane!
A boca de Rosinha escancarou-se num círculo de espanto. A moura de Souane? Então sempre era verdade o que se dizia... A Comadre Josefa tinha razão!
E a moura encantada, inclinando-se um pouco para a pastorinha, continuou agora em tom mais lamentoso:
— Sim... Sou eu aquela a quem chamam a linda moura de Souane... Passo aqui as noites e os dias chorando a minha desgraça, a minha triste sina...
Suspirou. Profundamente. Vagarosamente.
— Vês?... É tudo o que posso fazer... Pentear-me com este pente de ouro e preparar a minha comida nesta sertã...
E mostrou aos olhos estupefactos de Rosinha a sertã onde fazia a sua comida e que depois foi colocar sobre uma pequena fogueira acesa no alto do rochedo.
Reparando no silêncio da rapariguinha, a moura encantada voltou a inclinar-se mais para a frente.
— Ouve lá... Não me queres salvar?
E dando de novo um tom musical e aliciante à sua voz, a linda moura de Souane propôs deliberadamente:
— Escuta, pastorinha... Se me desencantares, ficarás rica para toda a vida. Se quiseres, poderás ser dona destas terras e encher de presentes aqueles de quem gostas...
Num repente, Rosinha pensou na Comadre Josefa, que tão boa sempre fora para ela. Como seria bom, de facto, poder encher de presentes a Comadre Josefa e dar-lhe toda a felicidade que ela merecia!...
De tal modo cresceu o desejo dentro de Rosinha, que se atreveu a perguntar:
— E para isso… que preciso eu fazer?
— Ora, é muito simples, acredita! Mas só te direi daqui a oito dias... pois quero ter absoluta confiança em ti. Percebes? Não podes dizer a ninguém, absolutamente a ninguém, que me viste e que falaste comigo. É segredo! Mas se contares esse segredo, o meu encantamento será dobrado e eu ficarei desgraçada para sempre... Não te esqueças disto, pastorinha!... Até daqui a oito dias...
Rosinha ainda quis fazer mais perguntas. Mas já não foi a tempo, pois a moura encantada desaparecera por completo...  
A partir desse momento, Rosinha passou a viver uma vida bem diferente da que lhe era habitual. Perdeu a alegria e a boa disposição. Não mais cantou nem correu. Todos deram por isso. Especialmente a Comadre Josefa.
— Mas que tens tu, rapariga?
— Não tenho nada...
— Até parece que te fizeram bruxedo...
— Cale-se, por amor de Deus!
A Comadre Josefa calava-se, sim, para lhe fazer a vontade, mas ficava-se a magicar no assunto. Que se teria passado, para haver tal mudança no feitio de Rosinha? Teria a moça arranjado algum namorico, sem lhe dizer nada?...
Resolveu vigiá-la melhor. Fingindo-se desatenta, a Comadre Josefa não perdia nem um movimento, nem um olhar, nem uma palavra da pastorinha. Porém, a verdade é que a Rosinha limitava-se a andar triste, preocupada, taciturna. Sentava-se e quedava-se pensativa, olhando o espaço. Não tinha apetite e voltava agora muito mais cedo com o rebanho.
Ali havia coisa, olá se havia — pensava a Comadre Josefa. E ela tinha de descobrir o segredo da Rosinha, fosse lá como fosse...
Para a pobre pastora, a situação também era angustiante. Ardia em vontade de desabafar, de contar o seu segredo — mas tinha medo que a moura encantada viesse a saber...
Conseguiu resistir nos três primeiros dias. No quarto dia já foi muito difícil, pois sentia em cima de si os olhares desconfiados e inquietos da Comadre Josefa. E, nessa noite, a Rosinha teve um pesadelo pavoroso, gritando alucinada e acabando por cair da cama abaixo...
Foi isso precisamente que deu uma grande ideia à Comadre Josefa. Na quinta noite, sorrateiramente, ajudou à Rosinha a deitar-se e ficou junto dela.
— Se precisares de alguma coisa, estou aqui ao pé de ti.
Rosinha ficou mais aflita. Teve receio de sonhar alto e contar tudo sem dar por isso. Não seria melhor escolher a escuridão da noite e confessar o seu segredo à Comadre Josefa? Ninguém mais ficaria a saber, com certeza. E a essas horas da noite, e ali, as duas fechadas em casa, a moura não daria por coisa alguma. Então resolveu-se.
— Mãe Josefa...
— Que é, minha filha?
— Está acordada?
— Estou. E tu?
— Eu também estou!
— Queres alguma coisa?
— Quero... Quero contar-lhe um segredo!
A outra aproximou-se mais, cheia de contentamento.
— Eu bem me parecia que tu tinhas um segredo...
— Pois tenho… e sabe uma coisa?
— O que é?
Rosinha, apesar de tudo, baixou ainda a voz.
— O segredo... é a respeito da linda moura de Souane!
— Que dizes tu?
O grito da Comadre Josefa quase fez estremecer a casa. Foi a vez de Rosinha recomendar menos barulho. Era preciso que ninguém mais viesse a conhecer o segredo. Senão...
E ali mesmo, em tom de surdina, sustendo as palpitações do coração, Rosinha narrou tudo o que se passara no seu encontro com a linda moura de Souane e as promessas que esta fizera, se ela a conseguisse salvar.
— Mas tens a certeza de que a viste e que falaste com ela?
— Tanta... como a que tenho de a ver a si e de estar a falar consigo!
 
No dia aprazado — e nunca o tempo, para ela, levara tanto tempo a passar — Rosinha lá voltou com o seu rebanho, pelo caminho percorrido uma semana antes. Fácil foi descobrir o penedo onde a moura aparecera.
Aliás, ela já lá estava, como que à espera da pastorinha. Esta sentiu-se cheia de febre. Teria a moura descoberto que ela atraiçoara a combinação feita? E não se enganava, infelizmente...
Assim que a viu, a linda moura de Souane rompeu num choro de amargura. Num choro de infinita tristeza.
— Traidora! Traidora! Deste cabo de mim e de ti!
— Mas... mas...
Rosinha bem quis falar, explicar-se, esclarecer a moura. Mas a palavras faltavam-lhe. E, no fundo, ela sentia-se culpada.
Foi portanto a outra que voltou a dizer entre lágrimas:
— Estamos perdidas as duas... Perdidas para sempre... Eu ficarei aqui mais encantada do que nunca... E tu nunca mais pararás no teu caminho. É o castigo que te dou, por teres faltado à tua promessa!  
E nesse mesmo instante, como que dominada por um pensamento tresloucado, a linda moura de Souane correu para a beira do penedo e atirou-se às águas do rio. Chorando... Chorando...
E também nesse mesmo instante, Rosinha, a pastora, fugiu dali, correndo pelas margens do Rabaçal como uma doida perseguida pela sua própria fatalidade. Correndo e chorando também. Até se perder na distância, para não mais ser vista...
 
De tudo isso, ficaram apenas, diz o povo dos arredores, gravados no penedo os sinais da sertã e da colher com que a moura cozinhava os seus alimentos. E ficou igualmente o choro da linda moura encantada de Souane, que continua a escutar-se de mistura com o marulhar das água do rio Rabaçal...

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume III, pp. 351-354
Place of collection
Quirás, VINHAIS, BRAGANÇA
Narrative
When
20 Century,
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography