APL 902 A perna da moira
Sonim é uma pitoresca aldeia de Concelho de Valpaços, com uma invejável tradição cultural. De lá me vieram muitas quadras, alguns romances, jogos, peças de teatro popular e também a lenda que se segue.
Perto da povoação, levanta-se um esfíngico penedo, com desenhos caprichosos que fazem lembrar uma perna de mulher, um vaso em forma de cálice e algumas figuras semelhantes a moedas, espalhadas pela superfície.
Ao centro, a todo o comprimento, vê-se uma fenda a dividi-lo em duas partes iguais, mas só à superfície. O resto do interior está perfeitamente unido.
A lenda assegura que tudo isto surgiu quando uma moira solitária, perseguida pelos cristãos, ali passou. Prestes a ser alcançada, agarrou-se ao penedo e pronunciou a palavra mágica: abracadabra.
A esta palavra, o penedo abriu-se ao meio, para lhe dar guarida. E a moira apressou-se a entrar nele, para escapar à perseguição.
Mas fê-lo com tal precipitação que deixou de fora o vaso, em forma de cálice, com moedas, que se espalharam pelo penedo. De fora ficou também uma perna da moira, cortada pelas arestas do penedo, que se fechou tão rapidamente como se abrira.
Dentro, ficou a moira, só com uma perna e duas talhas de ferro:
uma cheia de oiro, e outra cheia de peste, para que as pessoas não se atrevessem a tentar apoderar-se do oiro.
Quem pretendesse fazê-lo teria de superar essas duas dificuldades:
rachar a pedra ao meio e acertar com a talha do oiro; porque, se abrisse a talha da peste, sofreria morte imediata e causaria a destruição de todos os habitantes de Sonim.
Certo dia, os moradores da aldeia reuniram-se para deliberarem se valia a pena correr esses riscos, mas não conseguiram chegar a acordo.
Os mais novos, de espírito aventureiro, pronunciaram-se pela afirmativa, argumentando com a sabedoria do povo: quem não arrisca não petisca, dos fracos não reza a história.
Os mais velhos, mais cautelosos, foram pela negativa, contrapondo o velho rifão: mais vale burro vivo do que cavalo morto. Deixassem, por isso, a moira em paz, para poderem também eles viver em paz.
Os jovens falcões calaram-se, vencidos, mas não convencidos; e, lá por dentro, dispostos a levar a deles avante.
No dia seguinte, reuniram-se sozinhos e decidiram meter ombros à arriscada, mas tentadora empresa.
Escolheram uma noite de lua cheia, para poderem trabalhar à vontade. E, quando toda a aldeia dormia o primeiro sono, pegaram em ferros, picaretas, marras e guilhos e abalaram para o penedo do tesoiro.
Chegados lá, traçaram um risco ao meio e a todo o comprimento do fragão. Depois, com as picaretas, abriram buracos ao longo do risco e espetaram os guilhos. Pegaram nas marras e foram batendo nos guilhos.
A cada pancada que davam, o coração batia-lhes no peito, mais pelo medo que pelo esforço, e quase parou, quando, após algumas horas de trabalho esfalfante, o penedo começou a abrir em toda a extensão da linha traçada.
Então, quando, já refeitos da ansiedade e do receio, se preparavam para meter os ferros, separar as duas partes do fragão e deitar as mãos ao cobiçado tesoiro, ouviram uma voz cavernosa, vinda do interior:
- Fugi, miseráveis criaturas, que estais a abrir as vossas sepulturas.
Ao ouvir aquelas palavras aterradoras, ó meu amigo, saltaram como um raio do penedo abaixo e, num salve-se quem puder, correram desenfreadamente, até chegarem a casa, banhados em suor frio e a tremer as maleitas.
Quando os mais velhos souberam da malograda tentativa e da covarde fuga dos jovens atrevidos, riam-se deles e comentavam com ironia:
- Então, valentões, já lavastes os calções?
Depois disso, nunca mais ninguém tentou apoderar-se do tesoiro do penedo da perna da moira, embora com a fenda aberta, porque, como diz o povo, o medo guarda a vinha.
- Source
- FERREIRA, Joaquim Alves Lendas e Contos Infantis Vila Real, Edição do Autor, 1999 , p.21-23
- Place of collection
- Sonim, VALPAÇOS, VILA REAL