APL 2845 Lenda do Mouro do Cabril
Foi ali, no Cabril, de tão estranha paisagem, que tudo isto aconteceu.
A Primavera começava a tornar verdes as escarpas e ravinas que pendem sobre o rio Zêzere. Grande número de árvores ensaiavam o seu vestuário de folhas. E as pequenas hortas formadas, como por milagre, nos estreitos socalcos, ofereciam à paisagem mais grandiosa da Beira Baixa um aspecto de frescura e renovação.
Isto passou-se há muitos anos. O local é antigo e no tempo dos Mouros foi importante. Mas vamos à nossa lenda.
Beatriz espreitou pelo postigo da porta de casa o céu azul. Sorriu satisfeita. O dia era todo promessas. Pegou na cesta com a costura, fustigou a porca que dormia perto com os seus bacorinhos, e lá foi, contente, para a ribeira do Cabril. Era esse o seu fadário, dia após dia. Mas antes de chegar o Sol posto, Beatriz já estava de volta para ajudar a mãe no preparo da ceia.
Era bonita, a moçoila. Os rapazes da aldeia e dos lugares vizinhos bem a disputavam. Mas Beatriz, talvez por se ver tão requestada, não havia meio de se decidir.
Certa vez a mãe dissera-lhe:
— Olha, o filho do Zé Torto disse ao pai que havia de casar contigo.
Beatriz rira.
— Coitado! Ainda há-de nascer três vezes!
— Porquê? É forte, é rico, é bom moço...
— Mas não me serve!
— Quem és tu, filha, para falares assim?
— Sou uma mulher, como vossemecê.
— Mas eu nunca me fiz parva!
Beatriz não respondeu. No íntimo, não estava satisfeita consigo própria. A mãe tinha razão. Sabia que corria atrás de sonhos. Os sonhos que a sua defunta avó lhe metera na cabeça, ao contar-lhe tantas histórias de pastoras e príncipes encantados...
Sentada em cima do penedo redondo, Beatriz deixou cair sobre o regaço a renda branca que estava a fazer. Olhou a água da ribeira que corria transparente. Vinha de longe, de sítios por ela nunca vistos, e quedou-se a meditar. Estava só. A paisagem que a rodeava era já demasiadamente sua conhecida para a impressionar com a sua grandeza. Mas deleitava-se em sonhar acordada uma vida que sabia não poder pertencer-lhe senão nesses seus devaneios. E defendia esses momentos de isolamento como quem defende a própria felicidade ou o único bem possuído. De súbito, alguém chamou por ela.
— Beatriz!
A rapariga olhou e ficou menos estupefacta do que seria para supor. Sorria ao jovem moreno, que envergava um trajo antigo e lhe sorria também. Perguntou:
— Quem sois... e donde vindes?
(Esta era uma frase que a pastora heroína de um dos contos ouvidos em criança dirigia ao estranho príncipe que certa vez aparecera para a desposar...)
— Vejo-te todos os dias, pois moro aqui perto.
Desta vez, sim, Beatriz mostrou-se estupefacta.
— Morais perto? Mas onde, se não existe por aqui nenhum castelo, nem palácio?
— Existe, sim. Tu é que não o vês.
Os olhos bonitos da rapariga interrogaram silenciosamente o desconhecido. Ele aproximou-se. Pegou-lhe na cesta do bordado e colocou-a sobre o penedo. Depois ajudou-a a levantar-se.
— Queres ver o meu palácio? É digno de se admirar.
— Quero!
— Mas toma cuidado! Se entrares nele, já não poderás sair.
Ela hesitou.
— E o senhor... é o dono do palácio?
— Sou.
— É casado?
— Não. Vim para te buscar!
— É príncipe?
— Mais ou menos...
— Está encantado?
— Estou. Mas de vez em quanto posso vir até cá fora e conviver com os outros mortais.
— E quando é que ficará desencantado?
— Quando tiver um filho de uma moçoila como tu.
Caminhavam devagar, lado a lado. Ela parou, de súbito.
— E a minha mãe? E a porca com os bacorinhos?...
— A tua mãe há-de chorar-te, julgando-te perdida. Quanto à porca, não te preocupes… Voltará para casa.
Beatriz olhou o jovem de rosto moreno.
— Mas tornarei a ver a minha mãe?
— Sim… tornarás a vê-la. E não te apoquentes. Serás feliz no meu palácio onde nada te faltará. Vem! Temos de estar lá antes de o Sol ficar a pino.
Docemente, continuando a viver o seu conto de fadas, a rapariga deixou-se encaminhar como quem vê cumprir-se o seu destino.
Já há muito tinham soado as ave-marias sem que Beatriz voltasse. Alarmou-se a aldeia inteira. Procuraram-na por toda a parte. Tudo em vão. Acharam a porca e os bacorinhos. Acharam a cesta com a renda branca e o saco com a merenda. Mas não encontraram Beatriz, nem viva nem morta! Choraram as mulheres do lugar agarradas à mãe da cachopa desaparecida como fumo. Quedaram-se pensativos os rapazes, não podendo acreditar no que as mulheres diziam à boca pequena: «Foi, decerto, o mouro do Cabril que a levou!...»
O mouro tinha fama de belo, poderoso e conquistador. Diziam as velhotas que uma rapariga muito bela, tão bela como a Beatriz, havia desaparecido certa manhã para nunca mais ser vista. Mas isso fora há muitos anos! Agora tinha sido a Beatriz a escolhida. Seria ainda o mesmo mouro quem a levara?... Ou o filho do mouro e da cachopa desaparecida havia quase setenta anos?...
Tudo parecia incoerente e os rapazes não acreditavam. Porém, as velhas e até as mulheres novas davam crédito à voz corrente de que Beatriz fora levada pelo mouro do Cabril, para ir viver no seu palacio encantado!
Alguns meses passaram. O Verão substituíra a Primavera. O Outono depusera o Verão. E o Inverno começara a fazer sentir a sua presença. O mês de Dezembro correra quase tranquilo, se não fora o vento cortante que deixara as arvores nuas, hirtas em esgares de pavor. O frio gelava os corpos. A terra empapava-se de chuva. O rio subira de nível. Nem valia a pena sair de casa. Mas no curral de certa casinha os porquinhos grunhiram. A mãe de Beatriz alarmou-se. Que seria? Teria o vento quebrado a porta tosca, ou a cheia invadido o curral?
Aflita, a mulher cobriu a cabeça com o xaile e saiu para verificar de que se tratava. A chuva tinha parado. Só o vento se fazia ouvir. Pouco faltava para o meio-dia. Mas a luz era fraca e triste. De súbito, a mulher parou estarrecida. Um homem ainda novo e bem vestido olhava-a fixamente. Ela, assustada, nem abriu a boca. Foi ele quem falou.
— Preciso de vossemecê!
— De mim?
— Sim. Alguém a quem muito estima deseja vê-la.
A mulher olhou o homem, num misto de estranheza e pavor, e declarou:
— Alguém... a quem muito estimo?... Só tive uma filha... Mas essa... desapareceu...
O homem insistiu:
— Venha! Precisamos de si.
— Mas aonde?
— A minha casa.
— E onde é a sua casa?
— Perto da ribeira.
— Da ribeira?... Mas... mas não há por ali nenhumas casas...
— Venha! Beatriz precisa de si. Vai ter um filho.
A mulher esgaseou os olhos e escancarou a boca:
— Beatriz... vive? Vai ter um filho? De quem?
Como resposta o homem pegou-lhe num braço e animou-a:
— Venha! Só vossemecê poderá assistir-lhe.
A mulher começou a chorar.
— Compreendo... ela deu uma cabeçada... está escondida por aí... não quer que ninguém a veja!
O homem não respondeu. Caminhava em silêncio. Meteram por veredas e atalhos até que o desconhecido parou. A mulher olhou-o então. Ele sorriu-lhe pela primeira vez desde que lhe aparecera:
— Chegámos.
Mais surpreendida ainda, a mulher julgou-o louco:
— Chegámos? Mas... onde vive Beatriz?
— No meu palácio. Vê este penedo? Basta que ele se mova e a entrada ficará a descoberto.
A mulher recuou. Pela primeira vez a verdade surgiu-lhe:
— Mora aqui?... Então... é o mouro do Cabril?
— Acertou.
— Que Deus nos acuda!
Ele não respondeu. Deixou de sorrir. Tocou-lhe num ombro e só depois falou.
— Oiça bem o que vou dizer-lhe. Beatriz jamais poderá sair do meu palácio. Mas o seu neto, se vossemecê souber calar-se, será um homem liberto, se for varão, ou uma mulher semiliberta, se nascer rapariga. Tudo depende de vossemecê. Para a gente da aldeia, Beatriz morreu. Compreende?
Ela tartamudeou um sim pouco convincente. O mouro voltou a lembrar:
— Olhe que só de si depende a liberdade do seu neto e a possibilidade de poder ver a sua filha de vez em quando!...
A mulher baixou a cabeça. E decidiu-se:
— Vamos!
Quase sem lhe tocar, a mão do jovem mouro fez deslizar o penedo. Escadas miudinhas estendiam-se até se perderem no escuro. O homem entrou primeiro e deu a mão à mulher para que o seguisse. O penedo voltou a rodar e, sem se saber como, uma luz semelhante à luz do dia deixou ver um corredor de pedra rosada e brilhante, ricamente alcatifado. Portas de madeira branca e dourada separavam as salas do palácio. O mouro parou junto de uma delas.
— É aqui. Vai ajudar a sua filha a ser mãe. Depois regressará a casa. Se nada disser do que viu, voltará aqui todos os anos neste dia e poderá ver muitas vezes o seu neto. Se disser a alguém seja o que for do que se está passando, nunca mais verá Beatriz e o seu neto perderá para sempre a liberdade.
Ansiosa, a mulher respondeu:
— Nada direi! Mas quero ver a minha Beatriz!
O mouro abriu a porta. A mulher entrou. Nem reparou no luxo surpreendente da alcova. Gritou, alvoraçada:
— Beatriz, minha filha!
Numa voz fraca, mas doce, Beatriz declarou enquanto beijava a mãe:
— Tinha tantas saudades suas! Receei que não pudesse vir... E o meu filho já não deve tardar a nascer..
Mal o menino nasceu — era um rapazinho — o mouro conduziu à ribeira do Cabril a mãe de Beatriz. Porque ela se demorara bastantes horas, o marido quis saber por onde andara.
Mas a mulher disse que um dos porquinhos havia fugido e que fora procurá-lo...
Um ano passou. Havia feira num lugar próximo. O pai de Beatriz obrigou a mulher a acompanhá-lo, embora esta quase chorasse para ficar em casa. Desesperada, a mulher seguiu sem nada poder confessar da sua aflição, pois perdia assim o dia marcado para tornar a ver a filha. De súbito, por entre a multidão que estava na feira, ela descobriu o mouro com um rapazinho ao colo. Sem poder conter-se, correu para ele, gritando:
— Diga à Beatriz que não posso lá ir!
O marido olhou-a com ar de estupefacção.
O mouro e o pequenino haviam desaparecido como fumo e a mulher chorava convulsivamente. Mas, por mais perguntas que lhe fizessem, o marido e os populares que se juntaram em seu redor, à mãe de Beatriz não arrancaram mais palavra!
E ainda hoje dizem que a pobrezinha ficou louca para sempre, devido ao misterioso desaparecimento da filha — levada, com certeza, pelo mouro do Cabril.
- Source
- MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume III, pp. 305-310
- Place of collection
- Pedrógão Grande, PEDRÓGÃO GRANDE, LEIRIA