APL 2722 Lenda de Alco e Baça
Este é o romance de dois enamorados: o Alcoa e a Baça. Enamorados iguais a muitos outros, nos sonhos, nos anseios, na luta, tantas vezes incerta, pela felicidade.
Passou-se há inúmeros anos, dizem...
Alcoa acabara de amanhar a pequena parcela de terra, que lhe coubera em herança. O Sol, numa fraqueza de agonia, desaparecia na linha do horizonte. E o rapaz, braços fortes de quem trabalha, rosto sadio, foi com a pressa de um apaixonado até à pequena barraca onde vivia a jovem dos seus cuidados.
Ao vê-la, o seu rosto iluminou-se, como se aquele sombrio ocaso fosse a mais linda manhã de Maio. Ela correu para ele.
— Estava a contar o tempo...
O rapaz acariciou-lhe os cabelos.
— Meu amor! Se este ano tiver sorte, em breve estaremos casados!
A rapariga encostou a cabeça ao peito do noivo, murmurando enleada:
— Quem dera, meu querido, quem dera!... Tenho tanto medo do futuro!
Surpreendido, Alcoa obrigou-a a olhá-lo, levantando com uma das mãos o queixo bem recortado da sua linda noiva.
— Tens medo? E de quê?
— Sei lá...
— Não desvies o olhar... Tenho o direito de conhecer os teus receios. Não contas então com os meus braços fortes... com o meu espírito de lutador?
Ela receou tê-lo melindrado.
— Eu sei quanto vales! Sei quanto gostas de trabalhar... Mas...
— Mas o quê? Estou habituado a amanhar a terra... Conheço todos os segredos da Natureza...
Ela sorriu-lhe.
— Eu sei. Mas.., enquanto não me vir junto de ti, dentro da nossa casinha... compreendes... vivo cheia de temor pelo que nos possa acontecer.
— Que ideia a tua, meu amor! Porque te atormentas assim, sem necessidade?
— Tens razão. No entanto… já ontem pensei dizer-te isto mesmo, mas receei ofender-te… Trago um pressentimento triste e mau dentro do coração.
— Que hei-de dizer-te, Baça? Afasta esses pressentimentos! Ajude-me o tempo nas colheitas que estão para vir, e tu verás!...
Deram as mãos com calor. Juras eternas voltaram a repetir-se. E o Sol morria aos poucos, lá ao longe, enquanto os jovens trocavam um beijo de amor...
O tempo das colheitas estava próximo. Havia, porém, muita ansiedade no coração de todos os lavradores daquelas terras, para os lados de Leiria. E numa noite em que a ventania zunia lá fora, alguém bateu fortemente à porta da cabana do jovem Alcoa.
Surpreendido, ele gritou, de dentro:
— Quem bate a estas horas?
Como resposta, as pancadas soaram mais fortes ainda, mais apressadas.
Destemido, o rapaz foi inteirar-se do que se passava. Mas, assim que abriu a porta, uma rajada de vento entrou, quase o derrubando. Caíram em terra o catre, a mesa e os bancos!
Num impulso de coragem, Alcoa fechou a porta. Então, dentro da casa, o vento girou num rodopio e, de súbito, transformou-se numa figura estranha, que sorria, fitando os olhos pasmados do jovem aldeão.
Ouviu-se uma gargalhada. E antes que o rapaz pudesse fazer qualquer pergunta, o desconhecido falou:
— Não te amedrontes! Não venho fazer-te mal. Quero apenas propor-te um negócio.
Atrapalhado, mas tentando encobrir essa atrapalhação, o rapaz perguntou:
— Mas… quem é o Senhor?
Nova risada, desconcertante e fria como o vento que soprava.
— Que preocupação é essa? Para que queres saber quem eu sou? O que deve interessar-te neste momento... é o negócio que venho propor-te, a propósito das próximas colheitas!
— Negócio... sobre as colheitas?
Outra risada cortou o ambiente.
— Ora vês como já começas a entusiasmar-te?...
O rapaz explicou:
— De facto, estou ansioso por saber o que vai dizer-me sobre as próximas colheitas... A minha felicidade depende do resultado deste ano.
A figura estranha procurou o recanto mais sombrio da velha cabana.
— Pois imagina que venho propor-te apenas isto: se estiveres de acordo comigo, dar-te-ei a possibilidade de conseguires colheitas maravilhosas, e poderás casar ainda este ano, como é teu desejo!
Alcoa arregalou os olhos, num espanto sincero.
— Mas... como sabe o senhor que eu estou para casar?
Outra risada, ainda mais insistente, deixou um frio na alma do jovem Alcoa. Mas já o visitante respondia:
— Eu sei tudo, meu rapaz... Eu sei tudo!
Alcoa ficou perplexo. Perguntou:
— Afinal… que pretende de mim?
— Uma troca! Uma simples troca. Eu dou-te a garantia da melhor colheita de todos os tempos e tu assinas um documento no qual me concedes toda a tua terra.
— Não compreendo...
A voz do visitante começou a mostrar-se ligeiramente enfadada.
— Não compreendes? Pois é fácil. Estabeleces um pacto comigo, percebes agora? Tu dás-me apenas a tua terra, que se tornará maior e melhor… e eu dou-te a certeza de poderes casar e ser feliz. Queres?
Alcoa abanou a cabeça.
— Que ideia estranha, Senhor! Mas… se lhe dou a terra… com que fico eu?
— Com o rendimento da própria terra, meu idiota! Terás riqueza… e poder! Serás mais forte do que os ricos e mais temido que os poderosos!...
Com a voz fremente de alegria, Alcoa concordou:
— Se isso for verdade… aceito!
Soou então a maior gargalhada dessa noite. A figura estranha diluiu-se no recanto da cabana e o vento tornou a soprar lá fora, com redobrada fúria.
Sozinho, Alcoa voltou para o seu catre. Mas nessa noite não conseguiu dormir.
O rapaz guardou segredo de tão misteriosa visita. A ninguém contou quanto lhe fora proposto. Mas a impaciência, enquanto aguardava o resultado das colheitas, ia modificando o carácter folgazão do jovem Alcoa.
Baça, a sua terna noiva, foi quem mais lhe notou essa mudança. E certa manhã em que ele passava para as colheitas, ela interpelou-o.
— Alcoa! Espera um pouco... preciso falar-te.
Ele impacientou-se.
— Agora não! Espera-me à volta.
— Tem de ser agora, Alcoa! Preciso saber o que tens... o que se passa contigo...
— O que tenho? Mas... nada de especial...
— Ando preocupada. Estás diferente...
Ele agarrou-a pelos ombros.
— Baça! Já reparaste nas minhas colheitas? Ah... se tudo acaba como eu penso!...
Ela não sorriu. Ele também nem o notou. O olhar do jovem perdia-se no horizonte claro, a perscrutar o futuro. O da noiva estava posto nele, tentando desvendar o presente, que se lhe afigurava enublado. Voltou a falar, para tentar prendê-lo a si.
— Alcoa! Eu sei que as tuas colheitas têm decorrido maravilhosamente. Mas só as tuas, e isso é que eu não entendo. Todos se queixam, todos... Só tu tens tido sorte!
Ele encolheu os ombros, com um sorriso desdenhoso.
— Pois claro! E o melhor ainda está para acontecer!
— Que dizes?
Ele riu um riso forte, que a impressionou. A rapariga estremeceu. Mas já ele lhe dizia adeus, afastando-se a passos largos...
As colheitas chegaram ao fim. Alcoa não cabia em si de contente. Tinham excedido toda a sua expectativa. Estava rico! Riquíssimo! Fazendo contas ao dinheiro, o jovem fechou-se na sua cabana.
Quando a noite chegou, ainda ele arquitectava planos. Foi então que a estranha e misteriosa visita de tempos atrás voltou a fazer a sua aparição e da mesma maneira.
— Ora cá estou eu, como prometi. Disse-te a verdade, ou não?
Alcoa teve um pequeno arrepio, mas tentou sorrir.
— Tudo se passou tal como o senhor disse. O mais extraordinário porém, é o meu caso em relação aos outros. Eles perderam tudo, coitados!
Soou ríspida a voz do visitante:
— Deixa lá os outros! Pensa sempre apenas em ti. Estás rico, meu rapaz. Rico e poderoso! Podes casar quando quiseres.
— Nem sei como agradecer-lhe...
— Sabes... sabes muito bem! Ora trata de assinar este documento, conforme prometeste.
— Vou buscar tinta.
— Tinta? Para quê, meu rapaz? Este documento só poderá ser assinado com o teu sangue!
Alcoa mostrou na voz todo o seu pasmo:
— Com o meu sangue?
Então o estranho visitante confirmou, com o maior à-vontade:
— Claro! Com o teu sangue... Foi a combinação que fizemos.
O jovem continuava perplexo.
— Mas o senhor não me falou em assinaturas com sangue...
— E isso que importa agora? Se estás rico… se tens tudo o que desejas... se podes casar assim que o entenderes...
Alcoa suspirou:
— Tem razão. É bem pouco o que me pede em troca de tanto que me dá. Aqui tem a minha assinatura!
A partir dessa noite, os negócios de Alcoa começaram a prosperar de um modo quase aflitivo, de tão extraordinário que era! A tal ponto que os vizinhos começaram a olhar o rapaz com desconfiança. Murmurava-se na povoação. Aqueles que o tinham conhecido na sua meninice opinavam que deveriam ter com ele uma conversa. E, certa tarde, foi decidido que um deles, um dos mais velhos, fosse falar a sós com Alcoa. E o velho assim fez. Esperou, sentado à porta de casa. E quando ele surgiu, atacou-o sem mais reservas.
— Olha, rapaz! Venho falar-te em nome dos homens desta terra.
Alcoa atacou.
— O que desejam?
O ancião ajeitou o chapéu.
— Sabes... tu és ainda muito novo e inexperiente na vida. Já o mesmo não acontece connosco. Somos velhos e sabemos alguma coisa... Ora eles pediram-me, como já te disse, que te fizesse ver um certo número de coisas...
Alcoa tornou-se agressivo.
— Que coisas?
O homem olhou-o.
— Não te irrites, rapaz! Só queremos o teu bem! Ora tu... vais por muito mau caminho...
— Dispenso conselhos!
Então o ancião irritou-se.
— Tanto pior para ti, Alcoa! pois então vou dizer-te o que pensamos: tu tens pacto com o Demónio!
O jovem franziu as espessas sobrancelhas.
— Cale-se aí! Sabe lá o que está a dizer! O que o faz falar é a inveja. A inveja que todos sentem da minha colheita!
O homem sustentou:
— Não é inveja. É plena consciência do que se está passando! Só assim se explica que as tuas terras estejam cada vez melhores... enquanto as nossas parecem cada vez mais ruins. Pois tem cuidado, Alcoa! Tem cuidado!...
A fúria transtornou a expressão do jovem lavrador.
— Se o senhor não fosse mais velho, ensinava-o já a ter-me respeito! Mas suma-se da minha frente e não volte a dizer sandices, ouviu? Senão…
Alcoa ainda levantou o braço. Mas uma voz de mulher gritou o seu nome, suspendendo-lhe o gesto. Ele voltou-se. Era a noiva que vinha a correr.
A rapariga mal podia respirar, de fadiga e de medo.
— Alcoa!... Alcoa!
— Que queres?
Era tão brusca a voz dele que a rapariga emudeceu por momentos.
— Vamos, responde! Que pretendes também de mim?
Ela achou forças para afirmar:
— Como estás mudado! É então verdade o que dizem?...
— Mas de que verdade falas?
Ela olhou-o aterrada. Ele insistiu:
— Vamos, vomita para aí todas essas censuras!
Com voz tremente, a jovem Baça esclareceu:
— Dizem que fizeste um pacto com o Demónio… E vendo-te como estás, desfigurado, acredito que é verdade. Tenho medo, Alcoa… Tenho medo!
Os soluços embargaram-lhe a voz. Então o jovem gritou, colérico:
— Se acreditas… vai-te! Desaparece da minha vista!
Correndo como louca, a jovem Baça abandonou o noivo. Andou, andou sem destino, três dias e três noites. Chorando... Chorando a sua grande desdita. A morte veio encontrá-la quando acabara de chorar a sua última lágrima. E conta a lenda velhinha que essas lágrimas reunidas se transformaram numa pequena ribeira, à qual foi dado o nome de Baça.
O jovem Alcoa caiu num desespero terrivel, quando soube da morte da noiva. E diz-se que, milagrosamente, ele renegou por completo o pacto que fizera e jurou a Deus doar as suas terras a Santa Maria se conseguisse alcançar o perdão de Baça. O seu remorso era pesado e triste. Chorava Alcoa, sem cessar, a mágoa de ter sido ambicioso. Chorava dia e noite. Noite e dia. E tanto chorou que também se transformou num rio: o rio Alcoa.
E passou a constar que, nas noites luarentas, as aguas do Alcoa murmuravam, quebrando o silêncio:
— Baça, meu amor!... Perdoa-me, peço-te por tudo que me perdoes! Baça… Jurei dar as minhas terras a Santa Maria, se tu me perdoasses…
Pois numa dessas noites (ou talvez na madrugada de um novo dia, quem sabe?) outra voz respondeu às lamentações e aos apelos do rio Alcoa. E essa voz disse:
— Sim... Já que tanto o desejas, vou perdoar-te... para que estas terras sejam na verdade de Santa Maria, e tu possas remediar assim os teus erros passados... Vou juntar-me a ti, Alcoa!
E ali mesmo, a ribeira Baça se misturou com o rio Alcoa, desaguando no seu lado esquerdo, que é o lado do coração...
Desde esse instante, o rio Alcoa passou a denominar-se Alcobaça, e todas essas terras ficaram devotadas a Santa Maria, cumprindo assim a jura feita.
E diz-se ainda que em certas noites se continuam a escutar murmúrios de vozes humanas, no meio das águas do rio. Murmúrios apaixonados. Murmúrios de amor.
- Source
- MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume I, pp. 267-273
- Place of collection
- ALCOBAÇA, LEIRIA