APL 1594 O Tacho do Tesouro

De Mexilhoeira para o sítio da Rocha vai uma estrada de carreteira e portanto muito larga. É Mexilhoeira uma bela povoação situada em lugar elevado, que se descobre do mar a grande distância.
 Certa mulher sonhou que nessa estrada, no sítio do Sumagre, onde a mesma é mais larga, ao pé de uma alfarrobeira, existia um tacho cheio de dinheiro em ouro, guardado por um mouro encantado, que entregaria tão grande tesouro a quem, pelo pino da meia noite, ali fosse e consentisse que o mouro lhe desse um beijo.
 Foi a mulher e encontrou o tacho de tal grandeza que, se sendo largo o caminho, ainda assim tocavam as asas nos dois valados, que o limitavam. Um enorme e nojento sapo cobria o dinheiro de que o tacho estava cheio, e era do sapo que, quem queria possuí-lo, tinha de receber um beijo.
 A mulher ficou horrorizada em vista do nojento batráquio, e retirou-se do lugar cheia de medo e de nojo. Não pensando que o mouro se lhe apresentasse sob uma figura tão asquerosa, tinha-se pouco a pouco acomodado à ideia de beijar um homem, embora mouro, sacrificando por interesse a sua virtude de mulher. Ora este procedimento da sua parte mais contribuiu para redobrar o encanto do mouro, o que para este foi bastante desagradável.
 Passados tempos sonhou ela novamente com o tesouro, e isto por três noites seguidas. Já então a mulher, em tanto pensar no sapo, se ia conformando com a ideia de beijar bicho tão feio, e talvez mesmo levada por aquele princípio de que o diabo não é tão feio como o pintam, ela se chegasse a convencer de que o sapo não era tão feio como a princípio lhe parecera. Além disso a mulher era extremamente pobre, e lá diz o ditado: Quando a necessidade entra pela porta sai a virtude pela janela. Por este
princípio, ou por ambos, a mulher sujeitou-se a passar por tão dura prova e, um dia, depois do sol pôsto, dirigiu-se ao sítio, onde estava enterrado o tacho.
 Caminhou pois cheia de ânimo e apresentou sem repugnância a face ao sapo. Imediatamente, ao dar e ao receber o beijo, saltou-lhe o globo da órbita, e com o outro que lhe restava, viu ela o sapo, substituído pela figura de um mouro formoso e gentil, que a aconselhou a vir todas as noites, à mesma hora (meia noite), àquele sítio para levar para sua casa parte do tesouro até que pudesse esgotá-lo.
 O mouro desapareceu imediatamente e tudo sucedeu como ele recomendara. Por muitas vezes andou a mulher na faina de transportar tão grandes valores, até que afinal chegou a esgotar o tacho.
 Ficou riquíssima, diz a tradição. A circunstância de ficar zarolha em nada contribuiu para que fosse daí em diante menos respeitada. Diz-se até que a todos parecia mais formosa, naturalmente porque aqueles que antes a olhavam não tiravam os olhos da pessoa, ao passo que depois não tiravam os olhos do dinheiro, que ela possuía.
 Viveu a mulher uma vida muito duradoura e a fama da sua riqueza estendeu-se por todo o reino de Portugal.
 Não diz a lenda se a mulher chegou a casar e teve muitos filhos, o que me faz crer que estava já em idade adiantada quando beijou o sapo, porquanto é publico e sabido que a tradição é sempre pródiga em dar numerosa geração aos que tiveram a dita de enriquecer por tão extraordinários processos.
 Ainda hoje uma ou outra pessoa de avançada idade rememora aos netos, nas noites de inverno, a história interessante de Dona Zarolha, é certo porém que, no princípio do século passado, ainda muita gente pôde ver os restos de um grande palácio, que fora a sua habitação.

Source
OLIVEIRA, Francisco Xavier d'Ataíde As Mouras Encantadas e os Encantamentos do Algarve Loule, Notícias de Loulé, 1996 [1898] , p.243-244
Place of collection
Mexilhoeira Grande, PORTIMÃO, FARO
Narrative
When
19 Century,
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography