APL 1883 O Encantamento
Em um sitio da freguesia de S. Bartholomeu de Messines existem as ruinas de uma casa antiga, cuja existencia remonta ao tempo dos mouros. No principio do seculo passado ainda as casas eram habitaveis, mas ninguem ahi residia por apparecer aquillo a que o povo chama medos. Como então pertencessem a um proprietario, que residia distante daqueile sitio, elle deu-as a um afilhado para nellas morar pelo tempo que quizesse.
Casou o afilhado e levou consigo a esposa para as casas. Notou, passado algum tempo, que a pequena distancia da casa, havia um pequeno monte de terra, que parecia ser todos os dias revolvida. Não ligou ao caso nenhuma importancia.
Tinha o rapaz por costume sair de manhã para o seu campo, ficando a mulher a preparar o jantar, que ao seu trabalno dia levava.
Em um dia teve a mulher de se occupar em certos serviços e só mais tarde começou a preparar o jantar. Appareceu-lhe então um menino, vestido á moira, e com um gorro encarnado na cabeça. Ficou a mulher muito atemorisada porque só então se lembrou de ouvir dizer que naquella casa appareciam medos. No entanto fingiu-se animosa e perguntou-lhe quem era e o que queria.
— Não tenhas medo: sou apenas um moirinho encantado; venho ajudar-te a fazer o jantar para te despachares a horas de o levares ao teu marido.
A mulher agradeceu os bons serviços do moirinho e dahi em diante ia elle todos os dias fazer-lhe companhia e ajudal-a nos serviços caseiros.
Em um dia a mulher, já familiarisada com o moirinho, perguntou-lhe por que espaço de tempo lhe prestaria elle os seus serviços. O menino respondeu:
— Ajudar-te-ei durante cinco annos, e no fim lego-te todos os meus thesouros.
— Onde estão esses thesouros?
— Na minha sala: vem comigo.
A mulher acompanhou o moirinho até o logar onde apparecia o terreno todos os dias revolvido. Logo que ali chegaram abriu-se uma porta e ambos desceram por uns degraus de fino jaspe e foram dar a uma riquissima sala, forrada de sedas bordadas a ouro. Viu a mulher muitos cofres a trasbordar de ouro e pedras preciosas.
— Tudo isto será para ti — disse o moirinho — se me deixares ajudar-te nos serviços da tua casa durante cinco annos; é necessario, porém, que ocultes a toda a gente — inclusivamente ao teu marido, o que acabo de te dizer; de outra forma perderás tudo e eu ficarei encantado ainda por muitos annos.
A mulher prometteu aguardar segredo inviolavel de tudo que estava vendo e ouvindo pelo tempo de cinco annos, emquanto o moirinho não estivesse desencantado de todo.
Viviam marido e mulher muito bem, mas, porque não ha bem que sempre dure, ou porque a mulher, certa de que seria num breve futuro possuidora de grandes riquezas, manifestasse nas suas conversações intimas com o marido aspirações desmedidas, e uma certa indolencia no serviço da casa, cousa que elle só notava aos domingos, porque nesse dia não saia de casa, o marido poz-se a imaginar que a mulher nos dias da semana chamava mulheres a ajudal-a no serviço caseiro, durante a semana; e desde que isto se lhe metteu na cabeça começou a tratar mal a mulher, e esta a sofirer desconsiderações do marido. Em um dia de semana, deixou o marido o seu trabalho do campo ás onze horas do dia é foi espreitar a mulher, entrando em casa quando esta o não esperava. Quando entrou pareceu-lhe que alguem se escondia. Procurou tudo e ninguem encontrou.
— Quem estava aqui quando cheguei? perguntou o marido incolarisado e com os olhos a saltarem-lhe das orbitas.
— Ninguem...
— Mentes, parece-me que vae haver aqui hoje contradanças.
A mulher, zelosa da sua honra, e persuadida de que o marido a feria no que era mais sagrado, resolveu contar tudo ao marido. Ainda não tinha concluido a exposição de toda a verdade e já se sentia doente em extremo. O marido ficou sériamente incommodado e foi chamar um barbeiro do monte, d’esses que curam todas as doenças com sangrias, com as quaes as doenças são curadas porque deixam de affligir os doentes, que resolvem ir para o outro mundo.
Vendo que a mulher ia a peior, chamou o confessor.
Confessou-se e n’essa noite ouvia ella as seguintes palavras:
— Infeliz! é este o teu castigo! Morres e eu aqui fico por muitos annos. Podias ser a mulher mais rica e mais feliz do mundo, e por culpa tua morres na pobreza e na desgraça.
Morreu a mulher na manhã do dia seguinte, e o marido conservou-se em casa por alguns dias. Eram tão grandes os gemidos que elle ouvia durante a noite e tamanhos sustos apanhou, que se decidiu a largar a casa.
Ainda hoje sobre as ruinas do velho casarão, em as noites agrestres, do inverno, apparecem vultos fantasticos, entre os quaes muita gente tem visto um moirinho de gorro encarnado a chorar.
- Source
- OLIVEIRA, Francisco Xavier d'Ataíde Contos Tradicionaes do Algarve, Vol. II Porto, Typographia Universal, 1905 , p.269-272
- Place of collection
- São Bartolomeu De Messines, SILVES, FARO