APL 1574 A Moura de Faro
Faro é hoje a capital do Algarve. No tempo em que os sarracenos dominavam nesta província, era Faro de pouca importância, comparada com Silves ou Tavira.
D. Afonso III tomou o castelo de Faro em 23 de Fevereiro de 1249.
[...] Diz a lenda:
Parte das forças que atacaram o castelo de Faro fôra colocada no largo actualmente chamado de S. Francisco, e estas forças eram comandadas por um brioso oficial, robusto e formoso rapaz, solteiro. Este oficial pôde ver em certa ocasião a formosa e gentil filha do governador mouro e dela ficou enamorado. A presença agradável e o aspecto belicoso do nosso oficial não passaram despercebidos à moura, e esta, em breve tempo, estava em relações amorosas com o valente oficial, por intermédio de um seu escravo, também mouro, e que conhecia perfeitamente as línguas portuguesa e sarracena.
Em certo dia conseguiu o oficial que a sua namorada o recebesse em
curto rendez-vous dentro do castelo, combinando-se que o mouro intermediário lhe abrisse, alta noite, a porta, hoje da Senhora do Repouso. Antes da noite dirigiu-se o oficial a algum dos seus camaradas e disse-lhes:
— Espero entrar esta noite dentro do castelo pela porta do nascente. Se não voltar, depois de pequena demora, é porque caí num laço bem urdido; e então peço-lhes que se o castelo for tomado e lhes venha às mãos a filha do governador a poupem e a não maltratem. Certamente ela não contribuiria para tal traição.
Prometeram-lhes os camaradas cumprir as suas ordens, depois que reconheceram a impossibilidade de o demover da sua empresa.
À hora marcada entrou o oficial no castelo e aí em doce colóquio se entreteve com a dama dos seus encantos. À hora de sair, acompanhou ela o seu querido namorado até à porta do castelo, levando consigo um irmão, criança de oito anos.
Quando se aproximaram da porta, disse-lhes o escravo, que da parte de fora estava muita gente, pois que mais de uma vez lhes chegavam aos ouvidos vozes abafadas. A gentil moura estremeceu.
— Não tenhas medo: respondo pelos que estão de fora, disse, o oficial à moura, dando-lhe o beijo da despedida.
Neste momento o criado destrancou a porta, fazendo pequeno ruído. Então foi a porta impelida de fora para dentro com muita força e um grupo de soldados cristãos, numa vozearia de estontear começou a gritar pelo seu oficial. A este impulso gigantesco, o oficial recuou um passo e susteve nos braços a sua gentil moura, colocando-a sobre os ombros e dizendo em voz alta:
— Para trás, para trás: estou aqui.
Já a este tempo soava por todo o castelo a voz de alarme. Armados até aos dentes afluiram os defensores à porta do nascente. O oficial, segurando nos braços a moura gentil, viu-se em iminente perigo. Avançou para fora com a moura e, quase ao transpôr a porta, hoje conhecida pela Senhora do Repouso, notou que tinha nos braços não uma formosa jovem, mas apenas uns farrapos, que se desfaziam à mais pequena e leve aragem. Olhou para o lado pela criancinha e não a viu. Então teve a profunda e tristíssima compreensão da sua desgraça. Caiu no chão sem sentidos.
Passadas horas tornou a si o oficial e viu-se deitado na sua cama sob a barraca de campanha. Tinha a seu lado um camarada, de quem era amigo íntimo.
— Quem me trouxe para este lugar? perguntou.
— Não fales porque te faz mal. O físico proibiu que falasses.
— Eu estou bom, disse o oficial erguendo-se de um salto. Quem me conduziu para aqui?
— Eu e os nossos camaradas. Estavas caído entre a porta do castelo.
— E a filha do governador?
O amigo nada lhe soube dizer da filha do governador. Contou-lhe que, tendo esperado com alguns camaradas a sua saída do castelo, tinham resolvido entrar à força, supondo que o teriam morto, e que o governador ousado acudira com as suas numerosas forças e rechaçaram a pequena força portuguesa. Nesse momento acudiram as forças do Mestre e de D. João de Aboim e os mouros tinham sido forçados a entregar o castelo, mediante uma avença com o Rei D. Afonso.
O oficial saiu da barraca e pediu ao amigo que o deixasse. Dirigiu-se à porta do castelo. Ao entrar pelo Arco da Senhora do Repouso viu ao lado esquerdo a cabeça de uma criança que se assomava por um buraco.
— O que fazes aí, menino? perguntou o oficial, conhecendo o irmão da sua namorada.
— Estamos aqui encantados eu e a minha irmã.
— Quem vos encantou?
— O nosso pai soube por uma espia que levavas nos braços a minha irmã acompanhada por mim e, invocando Allah, encantou-nos aqui no momento em que transpunhas a porta. Por atraiçoarmos a santa causa do nosso Allah aqui ficaremos encantados.
— Por muito tempo?
— Enquanto o mundo for mundo.
O oficial, um valente, não pôde suster as lágrimas. Quis ainda perguntar à criança pela irmã mas a criança desaparecera.
Nunca mais ninguém viu o oficial rir. Terminado o cerco, pediu licença ao Rei e recolheu-se a um convento, onde professou adoptando outro nome.
- Source
- OLIVEIRA, Francisco Xavier d'Ataíde As Mouras Encantadas e os Encantamentos do Algarve Loule, Notícias de Loulé, 1996 [1898] , p.145-150
- Place of collection
- FARO, FARO