APL 686 O Palacio da Moura de Óbidos

I

Obidos é uma villa encantadora, uma vila museu, onde os passos á noite ressoam nas ruas antigas, como vindo de vélhos echos renascidos. Em volta, as muralhas dos Mouros e dos Reis de Portugal cingem-na para a guardar, e perfilam-se marcialmente, com as ameias a recortarem-se no ar em geito de balcões, para a villa se debruçar nellas sobre os campos lindos, que a rodeiam.
 Era manhã de S. João, fresca, virginal, perfumada. Vinha mui longe à aurora, e corria no ar uma viração leve. De ha muito os gallos cantavam pelos campos, respondendo uns aos outros em brados de sentinellas vigilantes.
 Tinha sido alegre, cheia de enthusiasmo aquella noite! No largo, em frente da egreja parochial de Santa Maria, cercado de matos por onde as rampas descem da rua ao largo, movia-se a multidão compacta dos que vinham gosar as festas. Accenderam-se as fogueiras. No meio da praça, reuniram quanto podia ser queimado, e lançaram fogo, a esse montão das coisas mais variadas, desde canastras vélhas a peças desfeitas de mobilias cheias de caruncho.
 As labaredas agitavam-se no ar, eram linguas enormes, acesas para o ceo, como se tivessem inveja das estrelas e quisessem chegar lá acima a lamber-lhes a luz!
Formou-se em volta da fogueira urna roda de homens e mulheres, que dansavam cantando.

Vá de roda, cantam todos,
Quem mais quer ao seu bemzinho;
Quem mais ama mais padece,
Eu hei-de amar poucochinho.

 E iam cantando, sempre em redor. A roda augmentava. Crescia a velocidade. Já voavam em vertigem, á volta do fogo crepitante, como a serpente a enroscar-se no encantador. Paravam e tornavam a principiar. E uma voz feminina cantava:
 
Vá de roda, cantem todos,
Cada qual sua cantiga;
Que eu tambem canto a minha,
Que a mocidade me obriga.

 Riam com algazarra violenta, cantavam ora uns ora outros, e a fogueira afogueava os rostos. Era uma loucura, que se tinha apossado de toda a gente. Aqui e alli havia outros grupos que cantavam, e armavam-se a todos os cantos bailaricos animados.
 A’ meia noite debandaram em grupo a cantar, para fóra da villa. Vão ás orvalhadas. Encheram-se as ruas estreitas, onde as vozes dos cantadores echoavam estranhamente. Ouviam-se então as cantigas allusivas a S. João.

S. João perdeu a lista
Das donzellas por casar;
Juntem-se todas á noite,
Para o Santo se lembrar.

 — Eh, raparigas, vinde todas, vamos d’ahi á fonte, para o Santo nos lembrar, — gritava uma rapariga estonteada pelo contentamento. A multidão passava sob a porta das, muralhas; a porta era escura; só deante de um nicho, na parede aristocraticamente forrada de azulejos, bruxuleava uma lampada medrosa. As vozes soavam mais cheias, no recinto do pateo, entre as paredes de defesa da porta. Ouvia-se a mesma voz a cantar:

S. João já se esqueceu,
já não sabe namorar:
- Escrevam-lhe as raparigas,
Para o Santo se lembrar.

 Em côro, vozes da multidão repetiam á moda de estribilho:

Para o Santo se lembrar.

 A noite estava clara. Da villa viam-se os grupos de populares em volta das fontes, onde chapinhavam na agua, a molharem-se uns aos outros. Gargalhadas, cantos, risos, gritos alegres, vinham lá de baixo para as escarpas em que se ergue o castello.

S. João, p’ra fallar ás moças,
Fez uma fonte de prata;
As moças não vão a elia
S. João todo se mata.

 Por fim, cansados, recolheram todos, e não assistia ninguem ao apagar das borralhas na fogueira do adro amplo de Santa Maria. Reinava um silencio profundo nas ruas da villa.

II

 E’ na manhã de S. João, que as Mouras encantadas vêm cantar à porta dos seus palacios ou das grutas dos seus encantos.
 Perto de Obidos havia uma Princesa encantada. Ainda hoje nos mostram um buraco informe, que era a sahida para a Mina da Moura.
 Um dia, sem o esperar, um homem encontrou a entrada no palacio, em que essa tão fallada Moura vivia. Mas conto a historia.
 Discutiam três homens a existencia da Moura. Dois não acreditavam, o terceiro jurava por ella.
 — São trêtas, — dizia um d’aquelles.
 — Pelas cinco chagas de Christo, que é verdade, — exclamava já zangado o outro.
 — Mas quem a viu?
 — Quasi vos podia dizer quem a tinha visto, — respondeu o crédulo; — houve um que entrou lá...
 — Lá, onde? — preguntaram os outros dois.
— Lá no palacio da Moura, debaixo do Outeiro... Era um homem...

***

 O Outeiro da Assenta é um outeiro que fica á direita da estrada entre Obidos e a Lagoa do mesmo nome. Era ahi que a Moura habitava, como o homem ia contando.
 Não se sabe quem, teve um dia um sonho, O Outeiro da Assenta era todo cavado, e no seu cavername occultava o mais esplendido palacio. Em frente, outro outeiro, tambem cavado, brilhava ao sol como se o sol o acendesse de luz e ouro. Era ahi, diziam, que os Mouros faziam minas e extrahiam o ouro destinado ao luxo do palacio; pois o pó, os restos d’esse ouro, brilhavam ainda alli. De madrugada, tendo acordado muito cedo em tão opulento sonho, o homem ergueu-se da cama, sahiu furtivamente a Porta do Cêrco, e pôs-se a caminho, descendo com cuidado as escarpas, a tropeçar a cada passo, em direcção do Outeiro da Assenta.
 Levava como unico ferramental um alvião, e prestes chegou ao seu destino. Do lado de Obidos, o Outeiro é talhado em pedra empinada. O homem subiu do lado opposto, e pôs-se a descer o muro natural dos rochedos, espreitando todos os buracos. Era já sol nado, quando o cabo do alvião se afundou em uma lapa nas anfractuosidades da rocha.
 Lá lhe pareceu que podia por alli prescrutar alguma coisa para o interior, e decidiu-se a entrar na lapa. Metteu-se a custo e, escorregando pela rampa, formada na face lisa da pedra, deu com os pés em chão seguro. Estava de pé, mas não via nada; cahira-lhe o alvião, que elle conseguiu encontrar no escuro. A’s apalpadellas, curvando-se, caminhava ao longo das rochas, até que viu claridade. Dirigiu-se a esse ponto, onde encontrou nem mais nem menos que uma passagem para recinto largo e bem illuminado.
 Era um salão enorme, todo talhado na pedra. De onde provinha a luz, não se via. Por cima, a aboboda era baixa, quasi a agachar-se sobre o visitante, abatido pelo espanto e pelo receio. Séries de columnas esbeltas erguiam-se do solo a amparar a aboboda ameaçadora. E, sublime surpresa, o chão, as paredes, as columnas, a aboboda, fulgiam como semeadas de estrellas! O homem, apenas entrou no salão, quedou-se maravilhado.
 Não ouvindo nenhum ruído, convenceu-se de que ninguem alli viveria, e tornou-se affouto. Deu uns passos, e as paredes brilhavam mais. Curioso, apalpou o que lhe parecia ter tamanho brilho, e convenceu-se de serem pedras preciosas, em fulgencias de côres differentes.
 A ambição alli o levára e alli o seduzia. Teve logo a lembrança cobiçosa de arrancar um montão de taes thesouros. Apertou o alvião nas mãos, depois de vêr que não desencravava facilmente as pedras e, retesando as pernas, a firmar-se, erguendo o alvião, deu uma pancada violenta, a toda a força, na parede rija da rocha.
 Não viu mais nada. O alvião bateu em falso, e com impulso elle cahiu, sentindo ainda um som ôco e soturno em resposta ao barulho do alvião no sólo, emquanto as paredes tremiam como em um terramoto. E ficou-se para alli sem sentidos.
 Do fundo do salão vinham vozes e tilintares metallico de espadas. O homem, no chão, assistia fóra de si, sem vêr, pois não estava em seus sentidos, e como se tivesse o dom estranho de vêr através da sua cegueira, em um pesadelo, seguia quanto se estava passando.
 Duas escravas pretas, vestidas de côres vivas, entraram, levantando ceremoniosamente, uma de cada lado, um pesado reposteiro, que se não distinguia do fundo baço das paredes scintillantes. Logo entrou em passo rapido um homem alto, espadaúdo, com barba em ponta, olhos vivos, e um turbante constellado de joias sobre a cabeça. Vinha encolerizado de feições e gesto. Vestido de sêda azul clara, lembrava um raio de luar, que tivesse entrado em uma cisterna. Trazia na mão uma cimitarra faiscante.
 Atrás de elle vinham homens de armas, de tunicas verdes e côr de rosa, turbantes brancos.
 — Quem ousou penetrar os umbraes do meu palacio? — preguntou o homem da cimitarra, e olhava pelo salão, percorrido pelo bafo regelante do ar que vinha de fóra.
 — Elle ahi está, Real Senhor! — exclamou em resposta, um dos homens de armas, indicando ao Rei — pois o Rei era o homem alto, que primeiro entrou, — o vulto prostrado e inerte do cavador de Obidos.
 — Erguei-o e trazei-mo, — ordenou o Rei, — e logo correram dois homens, que levantaram o Obidense. Este acordou, recuperando os sentidos num ataque de medo. O Rei sentára-se no throno, entre columnas, que então brilhavam como a lua, em um céu de estrellas. E o Rei continuou, quando lhe levaram o homem: — Como ousaste tu vir aqui?
 — Foi sem o esperar, não foi por querer, — respondeu tartamudeante de mêdo, o homem de Óbidos.
 — De onde vens, e quem és?
 — Um pobre trabalhador de Obidos, meu Senhor..., que não faz mal a ninguem...
 — E, por não fazeres mal a ninguem, vens roubar-me as riquezas do meu palacio?
 — Perdão, Senhor, eu não… — respondia o homem, cada vez com mais mêdo.
 — Vou-te cortar a cabeça, para que não vás contar a Obidos o que viste aqui.
 Esteve a ponto de outra vez perder os sentidos o pobre do homem. A voz embargou-se-lhe na garganta, e não teve forças para resistir. Dois homens preparavam os alfanges, já nús, a brilharem sinistramente como dois crescentes. Um terceiro amarrava-lhe as mãos atrás das costas.
 — Um alfange pela frente, outro pela rectaguarda — mandava o encarregado da execução, e assim um dos homens a par do desgraçado Obidense devia de lhe cortar com o alfange a cabeça pelo pescoço de deante para trás, e outro com o seu alfange dar-lhe-hia o mesmo golpe, mas de trás para deante; iam mostrar a sua dextrêsa.
 A’ volta, estavam todos suspensos na emoção do espectaculo a que iam assistir. Já as espadas se erguiam, e os dois homens as empunhavam com as duas mãos, quando entrou no salão uma menina, branca como um lyrio, um vestido largo a cahir-lhe pelo corpo abaixo em larguissimas prégas. Approximou-se do grupo da execução, fez um signal de quem pede demora, e dirigiu-se ao Rei.
 — Pae, peço-te este homem, dá-me a sua vida.
 — E’ um ladrão, que ousou entrar nos meus dominios. Como pedes para elle, minha filha, o meu perdão?
 — Perdôa-lhe, peço-te.
 — Não.
 — Dá-me a vida de este homem. Compensarte-hei da tua justiça.
 O Rei ergueu-se e fez signal aos homens; a filha do Rei, voltando-se, comprehendeu tudo, gritou a suprema angustia feminina, implorando perdão para
o desconhecido. Ergueu as mãos.
 Era tarde. As duas espadas, brandidas com força, faiscaram direitas ao pescoço do homem de Obidos; tocaram ao mesmo tempo a pelle do desgraçado, e, afiadas como navalhas, cortaram-lhe a cabeça de um só golpe; rasparam de leve uma na outra, com o ruído de laminas que deslisam. Foi quanto a Princesa viu: as espadas a brilhar, como dois crescentes de lua a guerrearem-se, e a cabeça da victima a rolar no chão.
 —, Malvado, — exclamou a menina, que cahiu desmaiada nos braços das aias.
 — Maldita sejas em todo o sempre, — disse em alta grita de colera o Rei.

*

Do três homens, que discutiam a existencia da Moura, calou-se o que contava a historia. Os outros ouviam com curiosidade.
 — Mas, como se soube tudo isso, se o homem, que entrou no palacio encantado, foi morto pelos guerreiros do Rei? — preguntou um de eles.
 — Isso não o sei eu, — respondeu-lhe o da historia da Moura.
 — E a Princesa? Que foi feito d’ella? e que tem com a Moura encantada? — pregunta o terceiro.
 — A maldição do Rei foi o encanto da filha. Os Mouros foram-se e a Princesa ficou encantada, até não sei quando.
 Era aquella, garantia o homem, a Moura que apparecia no Outeiro da Assenta, e a quem não havia pessoa que desfizesse o encanto.

III
 
 Era aquela manhã de S. João, fresca, virginal, perfumada. Vinha muito longe a aurora e corria no ar uma viração leve. De ha muito os gallos, dispersos na sombra, cantavam pelos campos, respondendo “alertas” de uns aos outros, em brados de sentinellas vigilantes.
 E’ uma das mais lindas historias de Mouras encantadas, a de esta pobre encarcerada!
 A’ beira da Mina da Moura passava um caminho hoje alargado pela estrada. Umas sebes encobriam a entrada na Mina; formavam-lhe deante, com algumas arvores, o vergel delicioso, onde a Princesinha Moura espairecia.
 Ella, antes de nascer o sol, vinha junto do caminho aguardar o viandante. A manhã de S. João era o dia grande para as Mouras, e a Princesa fazia então O seu melhor toucado.
 A Mourinha era delgada e transparente como as alvoradas. Vestia sempre uma tunica de sêda côr de salmão, desmaiada, a apertar-lhe na cinta com um cordão de fios de ouro enfiados em rosario de perolas e diamantes. Os cabellos, muito fartos, muito louros, cabiam-lhe pelas costas abaixo em ondas de espumas de ouro; a luz baça da manhã banhava-se nellas e eram mais louras ainda. Era mais rico o seu cabeilo do que todos os thesouros escondido no palacio.
 Quando se penteava, e o cabelo fazia cascatas de refulgencias de todos os lados, parecia que o sol, num jacto de luz, lhe penteava em segredo e ás escondidas a cabelleira.
 Linda, pois não era? Quem o duvida!
 Sentava-se á beira do caminho. As arvores formavam-lhe docel, a relva atapetava-se-lhe aos pés, e ella, no meio da verdura, a sobressahir da sombra, dir-se-hia uma santa, em um nicho.
 Então, lentamente, para que a madrugada fosse mais lenta, penteava-se com um pente de ouro e pedrarias, tão lindo que só em ella, tão linda, elle dizia bem.
 Cantava. Cantava — quem sabe? — talvez os romances dos seus ignorados amores, como os anjos dos presepios vaporosos, subtis, da Sé e da Estrella, de Lisboa.

*

 Approximava-se o caminhante na madrugada somnolenta. Ao longe quebravam-se os ultimos descantes das horvalhadas do S. João.
 
Para o Santo se lembrar
……………………….
São João todo se mata.

 Os que da Varzea ou das bandas da Lagoa de Obidos tinham ido à villa divertir-se nas fogueiras, ia regressando estremunhados a seus lares. Assim passavam á beira do recanto, em que a Moura se penteava. De longe ouviam já aquelle doce cantar, que lhes accendia o caminho, Ao senti-los approximar, a canção da Moura tremia; subia no ar, como fumozinho tremulo de um telhado ao longe. O coração dos que passavam no caminho, tremia na emoção transmittida em tão estranha prece. E o pente de ouro, cujas pedras preciosissimas tremeluziam, tremia na ponta dos dedos, brancos corno lyrios brilhante à beira de uma nascente limpida.
 — Será este o meu salvador? — preguntava-se ella a si propria.
 Os passos eram mais rijos, mais proximos. Avistava-se o caminhante na volta do caminho. E num sorriso, todo aberto em auroras, uma promessa côr de rosa, preguntava ao homem que passava junto d’ella:
 — Dize-me, meu amigo, qual é mais lindo: o meu pente de ouro e pedras, que meu pae me deu... ou eu, que te fallo e te sorrio?
 A voz era pequenina, um gorgeio leve de duas gottas de crystal. E de, interdicto,. . . — se ella era a Senhora Moura! — ... parava com espanto, respondendo-lhe com receio:
 — Vossemecê é que é, pois então? -- e cortejava rudemente.
  Ella sorria e agradecia com tristeza.
 Elle seguia o seu caminho, emquanto a Princesa cantava mais tristemente as suas canções, continuando a pentear-se com o pente de maravilha.
 Passam mais camponios, e todos davam egual resposta; a Moura era mais linda que a joia do pente, a brilhar na sua mão de marfim. O dia approximava-se. Um estrupido de cavallo faz erguer a cabeça da Moura; as mãos cahiram-lhe insensivelmente sobre o collo; a distancia, galopava naquella direcção um joven fidalgo com dois pagens atrás de si, em cavallos brancos.
 Era a ultima esperança da manhã. O arrebol annunciava o dia, e as Mouras não pódem esperar o sol.
 Mais affouta, e lembrando-se do encanto, levantou o pente e começou a alisar com elle os cabellos de ouro. Com a mais linda voz, que jámais tivera, e a ella mesmo admirava, retornou as suas canções.
 Escondida ainda nas arvores e nas sebes, o moço fidalgo não a via, e parou ao ouvir aquella voz tão doce e tão cheia de mysterio, como se fosse a propria madrugada a cantar.
 — Quem canta ahi? — preguntou elle.
 Como não obtivesse resposta e o canto continuasse, repetiu a pregunta. Por fim apeou-se, entregou o cavalo aos pagens, e espreitava por cima das sebes; era difficil encontrar a Moura, sentada no chão entre as sebes altas, que só lhe abriam vista para o caminho e passagem para a Mina. Alongando-as, conseguiu dar de cara com a linda Princesa. Ela sorriu, ao vê-lo, como se o conhecesse de ha muito, e lhe tivesse acabado de fazer uma travessura.
 — Quem sois, meu encanto? — interrogou elle.
 — Filha de reis, e penteio-me como vêdes, meu Principe, á luz da madrugada, — respondeu a rir-se.
 — Que cantaveis?
 — Os meus amores!
 — E’ linda a historia dos vossos amores! — disse o fidalgo. — Mais linda que todas, vós sois...
 — Ora, voltou a Moura, — não é mais lindo que eu este pente, que me vêdes na mão?
 — Como póde um pente ser mais lindo que a lindesa de um encanto como vós!
 — Não é então mais bello do que eu? — accrescentou ella. — Vêde como brilha! Resplandece. E’ luz, é ouro, é vida, é a salvação, é o encanto...
 — Tudo isso. Mas mais que tudo, acima de tudo, vós.
 E, dizendo isto, com ares de namorado, o moço ajoelhou deante da Moura, O gôrro emplumado roçou pelo chão.
 A Moura ergueu-se. Ficou de pé, como estatua da Dôr, transparente como as manhãs de Abril. Os braços cahiram-lhe em desalento ao longo do corpo. A cabeça pendeu sobre o peito, inundando os hombros com as ondas do cabello de ouro. O pente soltou-se-lhe da mão, e o moço restituiu-lho com cortezia.
 — Sois vós o maior encanto, a maior belleza — repetiu o moço.
 Ella sorriu, e agradecia com tristeza. Uma perola oscillou em cada palpebra. E em um impeto de decisão voltou-se, dizendo com amargura:
 — Dobrastes-me o encanto. Devieis de achar mais lindo o pente dos meus cabellos!
 Os raios do sol annunciavam-se já no horizonte, em um arco triumphal de clarões vermelhos. Enfeitava-se em volta o ceu. Findava a hora da liberdade para a Moura. Levemente recolheu á Mina, emquanto o fidalgo tentava prender-lhe os vestidos, que lhe fugiram da mão como a nevoa da manhã. Sem a perseguir, seguiu-a com os olhos; e ella regressou ao seu palacio, vagarosamente, soluçando saudades e amarguras, como ao rythmo da sua marcha funebre.
 Ao seu desapparecer nas profundezas da Mina, o moço ergueu-se, correu a retê-la, mas já a não viu. E foi-se embora com a morte na alma, naquelle lindo ralar do sol, em manhã de S. João.

Source
CHAVES, Luis Lendas de Portugal: Contos de Mouras Encantadas Lisbon, Livraria Universal, 1924 , p.41-58
Place of collection
ÓBIDOS, LEIRIA
Narrative
When
20 Century, 20s
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography