APL 714 Lenda da ria formosa
Nesse tempo, um tempo antigo,
Quando o Gharb era mourisco,
Viver aqui, eu vos digo,
Como cristão, era um risco.
Era trazer sua vida
Presa à vida por um fio,
Porque a terra era perdida
E o mar estava vazio...
Dos jardins que então houvera,
Todos brancos de luar,
Onde à noite a primavera
Co’a lua vinha brincar,
Tudo secara, que logo
As várzeas de terras duras
Foram passadas a fogo,
P’ra não terem mais culturas.
Nem havia fontes de águas
Por esses campos mimosos;
Nelas choravam as mágoas
De outros dias mais ditosos.
E os moiros aqui ergueram,
Ao longo do litoral,
Os rudes castelos que eram,
De guerra, sempre o sinal.
Ali viviam faustosos
Por vezes às musas dados,
Em palácios majestosos,
De oiro e de prata forrados,
Mas cada castelo tinha
Um váli que o governava,
E, às vezes, uma rainha
Que o trono lhe disputava.
E em todos havia, ao certo,
Uma infanta, uma princesa,
Trazendo lá do deserto
Títulos de alta nobreza.
Era Fathma, era Dinora,
Era Cadija e Sarah,
Era Séfora, era Khora,
E todas filhas de Allah.
Seus olhos eram safiras;
Os rostos eram morenos;
Tocavam harpas e liras;
Na boca, tinham venenos...
Amavam e eram amadas...
— Que importa a religião,
Se o amor tem sempre estradas
Por onde avança a paixão!
Mas um dia alguns valentes
Cavaleiros portugueses
Invadiram, exp’rientes
Da guerra já tantas vezes,
Aquela terra sagrada,
Terra de Santa Maria,
Onde a força duma espada
A cruz cristã redimia.
Derribaram altas portas
Dos muros assim tão altos,
E depois, a horas mortas,
Se apresentaram prós assaltos.
Vencida a força dos moiros,
Em barbáries de rudezas,
Eles buscaram tesoiros,
As infantas e as princesas.
Logo ali lhes prometeram
Fazê-las todas cristãs,
E provas de amor lhes deram
Por três dias e manhãs.
Cada moira os agradava
Na ternura dum olhar,
Que outra mulher não amava
Como ela sabia amar.
Foram três dias de céu
Passados ali na terra;
Quanto tempo se perdeu
Tirado à luta da guerra?
Quiseram depois seguir
P’ra Santa Maria de Haro,
Quando alguém lhes fez ouvir
Um discurso estranho e raro.
Era Allah que dos espaços
Ditava frases cruéis,
P’ra vingar dos fracassos,
A morte dos infiéis.
Ao levante trovejava,
Era a chuva tão ruim,
E o vento não acalmava,
Mas a voz dizia assim:
‘Filhos de gente cristã,
“Que ousastes vencer meu povo,
“Hei-de ver-vos amanhã,
‘Serdes água ou pó, de novo.
“E vós, mulher’s agarenas,
“Que vos perdestes, amando,
“Sofrereis as mesmas penas,
“Por esse crime nefando.
A fala do Deus do Islão
Continuou, do mesmo modo,
Dia e noite e todo o v’rão,
Mas depois morreu de todo,
Que das esferas sagradas
Os pôde assim transformar:
— Elas em dunas doiradas,
— Eles em águas do mar.
E o tempo parou, depois,
Por meses, anos sem fim.
Morreram luas e sóis
Deste modo, sempre assim.
* *
Só mais tarde, Eras passadas,
Voltaram gentes cristãs,
Que paravam de abismadas
Ao brilho dessas manhãs.
Pois quando o sol se elevava,
Apolíneo, imorredoiro,
Os doces raios lançava
Ao redor das ilhas de oiro.
E o mar verde, amante eterno,
Embalava, sem parar,
Num abraço tão fraterno
As ilhas, para as beijar
Logo à Ria decidiram
Chamar-lhe, por ser mimosa,
Um nome, que assim pediram,
Que fosse RIA FORMOSA...
* *
Entanto, cada princesa
Lá continua encantada,
Porque a lenda inda hoje reza
Que é feliz e assim amada’
- Source
- LOPES, Morais Algarve: as Moiras Encantadas s/l, Edição do Autor, 1995 , p.103-108
- Place of collection
- OLHÃO, FARO