APL 2854 Lenda da Moura Floripes
Verão pleno. Calor intenso. Ali, no Algarve, o mês de Agosto é muito quente e tem noites cálidas de um luar luminoso como obra de magia. Tudo, natureza e povo, parece banhado por essa luz prateada. Um ar de mistério envolve a terra quando as horas avançam no silêncio da noite. E a imaginação fervilha nas malhas do sonho. E a lenda tece-se na trama de fios de ansiedade e de luar.
Julião caminha não muito afoito. Mas precisa tirar tudo a limpo, custe o que custar. Ou o compadre Zé era um mentiroso, ou a coisa merecia a pena ser vista. O caminho não é dos melhores. Metera por atalhos para chegar a horas ao sítio do Moinho do Sobrado. Valia-lhe a noite, tão clara, quase dia, e o conhecimento do local. É certo que poucos se arriscavam para essas bandas. Aninhas tinha-lhe mesmo pedido que deixasse a aposta e não fosse ao Moinho do Sobrado. Mas Julião era assim mesmo: teimoso e desejoso de saber o que se passava à sua volta.
Julião tropeça. Oscila, vai cair, mas aguenta-se. Sorri intimamente, e recorda enquanto caminha o diálogo havido entre ele e o compadre Zé.
— Pois dou-te a palavra de honra que me deito no chão mesmo em frente da sua janela!
— Pode lá ser, compadre Zé! Ninguém para lá vai!
— Vou eu, Julião! Vou eu!
— Porque andas sempre pingado!
— Pois ando. Mas quando estou quase a adormecer é que ela vem!
— Talvez em sonhos...
— Não é, Julião. Garanto-te que não é! Bem sinto a sua mão a fazer-me festas!
— Não acredito!
— Pois vai lá ver!
— Ver o quê?
— A moura encantada!
— Ora! Com o vinho que vossemecê bebe, é possível ver duas mouras... quanto mais uma!
— Queres uma aposta?
— E conforme...
— Pois vai esta noite ao Moinho do Sobrado. Espera que dêem as doze badaladas. Se ela não aparecer, dou-te a Herdade das Relvas como presente de noivado!
— E se aparecer?
— Não te dou nada quando casares com a Aninhas.
— Lá isso...
— Ah!... agora já estás com medo...
— Não é medo, compadre... mas bem vê... Se a Aninhas sabe… é capaz de não gostar...
— Boa desculpa, Julião! O que tu queres é fugir à aposta!
— Pois está apostado! E sempre quero ver se a tal moura me aparece...
Julíão sorri. Talvez o compadre Zé o estivesse espiando por ali perto. A Aninhas ficara rezando, pedindo a Deus que a moura não aparecesse. O culpado era o compadre Zé, que espalhara ser a moura a mulher mais linda que ele vira!...
Julião torna a tropeçar. Ali, o terreno não é dos melhores. Mas caminha sempre. Está quase a chegar. O silêncio é completo. Não se vê vivalma em redor. Apenas o moinho desmantelado e sem voz. É lá que a moura habita — segundo a versão do velho olhanense...
O rapaz afrouxa o passo. O luar bate nas paredes brancas do moinho e parece reflectir-se nos seus próprios olhos. Aproxima-se mais. Pára mesmo em frente e contempla o velho moinho abandonado. O silêncio começa a pesar sobre a cabeça e o peito do Julião. Quase lhe apetece chamar. Mas por quem? Resolve esperar, embora inquieto. Senta-se numa pedra mais alta. Quem tenta escutar no silêncio, consegue ouvir mil ruídos estranhos e longínquos. Assim acontece a Julião. Ouve campainhas ao longe. Uma espécie de zumbido acerca-se dele, de vez em quando. Mas nada lhe parece a moura do moinho! Levanta-se. Sacode as pernas. Dispõe-se a regressar pelo mesmo caminho. Já tinham soado as doze badaladas havia meia hora. Esperara mais do que o combinado. Olha o moinho, numa espécie de despedida. E, de súbito, o seu olhar fica preso à pequena janela desmantelada. Um rosto de mulher está ali. Julião aproxima-se. Ela sorri-lhe e desaparece para logo surgir em baixo, caminhando para ele. Pára a dois passos do seu corpo. É, na verdade, lindíssima. Traz um manto branco a cobri-la. Julião pergunta, para quebrar o silêncio entre os dois:
— Como te chamas?
— Floripes.
É triste a sua voz harmoniosa. Ele volta a interrogá-la:
— És moura?
— Sim. Sou moura encantada.
— E vives aqui?
— Desde que a minha raça foi expulsa.
— Quem te encantou?
— Meu pai.
À luz prateada da Lua, Julião vê a expressão dorida da pobre moura. Sente piedade. Fá-la sentar-se na pedra onde estivera antes. Pergunta ainda:
— O teu pai conseguiu fugir?
Ela suspira antes de responder:
— Saiu sem poder prevenir-me.
— Tinhas irmãos?
— Não, mas tinha noivo...
— E que lhe aconteceu?
— Fugiu também, mas voltou. Porém, vi o seu barco afundar-se antes de o conseguir abraçar! Fiquei só. Então… o meu pai... mesmo à distância... encantou-me, na esperança de poder voltar um dia a libertar-me.
— Mas não voltou!
— Não. E eu continuo encantada!
No rosto moreno da jovem, as lágrimas brilham sob a luz da Lua. Julião sente-se fraquejar. Ouve com preocupação a sua própria voz perguntando:
— E gostarias de ficar desencantada?
Ela sorri-lhe de novo, entre as lágrimas. Responde com demasiada ansiedade na voz:
— Serias capaz disso?
— Conforme. Qual é o meio?
— Será necessário que um homem me dê um abraço à beira de um rio e me fira no braço, do lado do coração. Logo que isto aconteça, poderei partir para junto dos meus.
— Mas isso é fácil!
— Não tanto como julgas.
— Porquê?
— Porque o homem que me abraçar e me ferir… terá de acompanhar-me a África!
— Por muito tempo?
— Por toda a vida! Não mais voltará aos seus!
Julião olha a moura. Esta levanta-se lentamente. Caminha para ele. Fita-o de frente. E pergunta:
— Estarás tu disposto a tanto?
Julião respirou fundo. Chama a si toda a coragem.
— Se fosse livre… tentaria.
— Tu és livre!
— Não sou. Aninhas espera-me para nos casarmos.
— Ela encontrará outro noivo.
— Mas eu amo-a... É bonita e boa rapariga.
— Mais do que eu?... Comigo também serias feliz.
— Não me tentes, Floripes! Aninhas ama-me. E tu é que poderás encontrar outro homem que queira seguir-te.
— Mas é de ti que eu gosto.
— E daquele que vem aqui tantas vezes? Tu fazes-lhe festas... ele, pelo menos assim o diz.
A moura suspirou. Sorri, olhando a Lua. E esclareceu:
— Sabes... ele é que me ama. Quis desencantar-me. Mas é um homem de meia-idade. Faz-me lembrar o meu pai. Compreendes?
Julião admira-se:
— Ele ama-te?... Mas... foi ele quem me disse para vir aqui...
— Fui eu que lhe pedi. Vi-te uma vez... Passaram aqui os dois. Tu não me viste...
— Não pode ser!
— É verdade. Ele disse-me que tu só gostarias da Aninhas, que não serias capaz de acompanhar-me. Mas eu fiz com que ele me prometesse que te traria junto a mim.
— E aqui estou!
Floripes baixou a cabeça.
— Sim... estás... Mas não queres seguir-me. Terei de acompanhar aquele que me ama e não ser acompanhada pelo que eu amo. Paciência! Cumprirei o meu destino.
E num choro convulso a moura Floripes correu para o moinho, não tornando mais a aparecer naquela noite.
Já manhã alta, Julião chega a casa. Aninhas está sentada à sua porta, o rosto molhado das lágrimas choradas. Perto, o compadre Zé olha-o. Julião corre para ela.
— Aninhas, meu amor! Não te trocarei nem pela moura mais bonita do mundo!
Ela cai-lhe nos braços, soluçando:
— Julião! Julião, tive tanto medo!... Quando via que não voltavas... O compadre Zé até chorou também...
Olham então em volta. O homem havia desaparecido. Julião murmura, aconchegando mais a si a namorada:
— Deixa-o! Agora nós e ele seremos felizes!
— Nós e ele?
— Sim. Não me perguntes mais nada.
E segundo conta a lenda, Julião e Aninhas casaram pouco depois. Como prenda de casamento, receberam não só a Herdade das Relvas como tudo quanto pertencia ao compadre Zé. Aos que lhe perguntavam porque tomara tal decisão, ele respondia apenas:
— Vou mudar de vida! Quero ir até às Áfricas.
E partiu, de facto, subitamente, sem se despedir de ninguém. Todos comentaram o caso, lamentando a sua loucura. Só Julião parecia compreender a decisão do compadre Zé. E nas noites em que a Lua prateava a província algarvia, Julião olhava o horizonte e perguntava para si próprio:
— Que terá acontecido ao compadre Zé e à moura Floripes?...
- Source
- MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume III, pp. 377-381
- Place of collection
- Olhão, OLHÃO, FARO