APL 129 Lenda da Bela Moura Floripes
A lenda da moura Floripes é, talvez, a Lenda que mais fascinou o povo de Olhão e que todos (miúdos ou graúdos, de baixa ou elevada condição social, parecem conhecer. Porquê? Porque se trata da história de uma moura cuja beleza cegava, em noites de luar, os pescadores quando estes iam para a faina da pesca e ela lhes acenava) seduzia e convidava, de vela acesa na mão a seguirem-na pelo mar dentro e a tentarem o seu desencantamento, mas até hoje em vão. Em noites banhadas de mistério aparecia e logo se desvanecia, permanecendo sempre na memória daqueles que em Olhão a viam...
Verão pleno. Calor intenso. Ali no Algarve, o mês de Agosto é muito quente e tem noites cálidas de um luar luminoso como obra de magia. Tudo, natureza e povo, parece banhado por essa luz prateada.
Um ar de mistério envolve a terra quando as horas avançam no silêncio da noite e Julião caminha não muito afoito, mas com vontade de tirar tudo a limpo, custe o que custar: ou o compadre Zé era um mentiroso, ou a coisa merecia a pena de ser vista, O caminho não era dos melhores, metera-se por atalhos para chegar a horas ao sítio do Moinho do Sobrado. Valia-lhe a noite, tão clara, quase dia, e o conhecimento do local. Certo era que poucos se arriscavam para aquelas bandas. Aninhas tinha-lhe mesmo pedido que deixasse a aposta e não fosse ao Moinho do Sobrado. Mas Julião era mesmo assim: teimoso e desejoso de saber o que se passava à sua volta. Julião tropeça, oscila, vai cair..., mas aguenta-se. Sorri intimamente e recorda, enquanto caminha, o diálogo havido entre ele e o compadre Zé:
— Pois dou-te a palavra de honra que me deito no chão, mesmo em frente da sua janela!
— Pode lá ser compadre Zé! Ninguém para lá vai!
— Vou eu, Julião! Vou eu!
— Porque andas sempre pingado!
— Pois ando. Mas quando estou quase a adormecer é que ela vem!
— Talvez em sonhos...
— Não é Julião. Garanto-te que não é! Bem sinto a sua mão a fazer-me festas!
— Não acredito!
- Pois vai lá ver!
— Ver o quê?
A MOURA ENCANTADA!
— Ora! Com o vinho que você bebe é bem possível ver duas mouras.. .quanto mais uma!
- É conforme...
— Pois vai esta noite ao Moinho do Sobrado. Espeta que dêem as doze badaladas. Se ela não aparecer, dou-te a Herdade das Relvas como presente de noivado!
- E se aparecer.
— Não te dou nada quando te casares com a Aninhas.
- Lá isso!
— Ah... agora já estás com medo...
— Não é medo, compadre...mas bem vê...Se a Aninhas sabe...é capaz de não gostar...
Boa desculpa, Julião! O que tu queres é fugir à aposta.
— Pois está apostado! E sempre quero ver se a tal moura me aparece...
Julião sorri, talvez o compadre Zé o estivesse espiando por ali perto. A Aninhas ficara rezando, pedindo a Deus que a moura não aparecesse. O culpado era o compadre Zé que espalhara ser a moira a mulher mais linda que ele já vira! Julião volta a tropeçar, ali o terreno não é dos melhores. Mas caminha sempre. O silêncio é completo. Não se vê vivalma em redor. Apenas o moinho desmantelado e sem voz. E lá que a moura habita, segundo a versão do velho olhanense... O rapaz afrouxa o passo. O luar bate nas paredes brancas do moinho e parece reflectir-se nos seus próprios olhos. Aproxima-se mais, pára em frente e contempla o velho moinho abandonado. O silêncio começa a pesar sobre a cabeça e o peito. A Julião quase lhe apetece chamar. Mas por quem? Resolve esperar, embora inquieto. Senta-se numa pedra ainda mais alta. Quem tenta escutar no silêncio, consegue ouvir mil ruídos estranhos e longínquos. Assim acontece a Julião. Ouve campainhas ao longe, uma espécie de zumbido acerca-se dele de vez em quando, mas nada lhe parece a moura do moinho! Levanta-se, sacode as pernas, dispõe-se a regressar pelo mesmo caminho. Já tinham soado as doze badaladas havia meia hora. Esperava mais do que o combinado. Olha o moinho, numa espécie de despedida, e, de súbito, o seu olhar fica preso à pequena janela desmantelada. Um rosto de mulher está ali. Julião aproxima-se, ela sorri-lhe e desaparece para logo surgir em baixo, caminhando para ele. Pára a dois passos do seu corpo. E, na verdade, lindíssima. Traz um manto branco a cobri-la. 3 u[ião pergunta, para quebrar o silêncio entre os dois:
— Como te chamas?
— Floripes.
E triste a sua voz harmoniosa. Ele volta a interrogá-la:
— És moura?
— Sim, sou moura.
— E vives aqui?
— Desde que a minha raça foi expulsa.
— Quem te encantou?
— Meu pai.
A luz prateada da lua, Julião vê a expressão dorida da pobre moura. Sente piedade. Fá-la sentar-se na pedra onde estivera antes. Pergunta ainda:
— O teu pai conseguiu fugir?
Ela suspira antes de responder:
— Saiu sem poder prevenir-me.
Tinhas irmãos?
— Não, mas tinha noivo.
— E que lhe aconteceu?
— Fugiu também, mas voltou. Porém, vi o seu barco a afundar-se antes de o abraçar. Fiquei só! Então meu pai, mesmo à distância encantou-me, na esperança de poder voltar a libertar-me.
— Mas não voltou?
Não. E eu continuo encantada! No rosto moreno da jovem, as lágrimas brilham sob a luz da lua. Julião sente-se fraquejar. Ouve com preocupação a sua própria voz perguntando:
— E gostarias de ficar desencantada?
Ela sorri-lhe de novo, entre as lágrimas. Responde com intensa ansiedade na voz:
— Serias capaz disso?
— Conforme. Qual é o meio?
— Será necessário que um homem me dê um abraço à beira de um rio e me fira o braço do lado do coração. Logo que isto aconteça, poderei partir para junto dos meus.
— Mas isso é fácil!
Não tanto como julgas.
Porquê?
— Porque o homem que me abraçar e me ferir...terá de me acompanhar até Africa!
— Por muito tempo?
Por toda a vida, não mais voltará aos seus.
Julião olha a moura. Esta levanta-se lentamente, caminha para ele, fita-o de frente e pergunta:
— Estarás disposto a canto?
Julião respirou fundo. Chama a si toda a coragem.
Se fosse livre tentaria.
_Tu és Livre!
— Não sou! Aninhas espera para casarmos!
— Ela encontrará outro noivo!
— Mas eu amo-a. É bonita e boa rapariga.
— Mais do que eu?... Comigo também serias feliz!
— Não me tentes, Floripes! Aninhas ama-me. E tu é que poderás encontrar um homem que te queira seguir. -
— Mas é de ti que eu gosto.
— E daquele que vem aí cantas vezes? Tu fazes-lhe festas...
— Ele ama-me...
— Já são horas de me ir embora. Adeus!
Naquele momento, Floripes soube pelo olhar de Julião que não havia de voltar àquele lugar. Floripes então ficou encantada para sempre à espera do noivo...
Moura encantada e que encantava Floripes era uma bela rapariga que aparecia aos homens e mulheres que trabalhavam numa fábrica situada ao pé da doca. Era uma linda jovem vestida de noiva. O que se dizia era que essa bela moça perdera o noivo em véspera de casar e com o desgosto que apanhou morreu. Aparecia nessa fábrica à procura do noivo. Surge em noites de temporal e de muita tempestade a chamar pelo seu noivo.
- Source
- AA. VV., - Lendas e Gastronomia Olhanenses Olhao, Ensino Recorrente e Educação Extra-Escolar / Coord. Concelhia de Olhão, 2002 , p.5-8
- Place of collection
- OLHÃO, FARO