APL 138 A “banda de levante” a “ floripes”; os estaleiros.

Em relação aos barcos, para o seu arranjo ou construção, havia os estaleiros, situados, os mais importantes, numa faixa de terra que ia desde a fábrica de conservas, Conserveira do Sul, antiga fábrica F. Delory (fábrica Velha) até mais ou menos onde está a Capitania do Porto. No extremo desta faixa, que era estreita, estava um moinho de maré, o Moinho do Sobrado. A norte da faixa de terra estava a “caldeira do moinho” e a sul a água da ria, que chegava até quase às traseiras do Posto de análises de marisco e a poucos metros do canto da fábrica. Chama-se “caldeira do moinho” ao espaço de terra que enche de água na maré a encher e que ao vasar passa pelas comportas das mós fazendo-as girar. Esta “caldeira” ia até às traseiras da Rua Nova do Levante ou Dr. Manuel Ramires.
 Hoje tem edificações. Aliás toda aquela zona compreendida entre a Rua Nova do Levante, incluindo a doca até ao novo estaleiro, era a “caldeira” dos moinhos ali existentes: Moinho do Sobrado (único que chegou intacto aos meus dias), Moinho do Inglês e Moinho Pequeno. Eram os 3 moinhos da “banda de Levante” de Olhão. A penente havia o Moinho da Barreta e o Largo da Feira era a sua “caldeira”. Este moinho de que eu conheci ainda as suas ruínas devia ficar situado mais ou menos nas traseiras da fábrica da Congelação.
 Pois era no princípio da faixa dos estaleiros, na parte que a ligava à terra, junto ao canto leste da fábrica Velha que a crendice popular dizia aparecer a Floripes.
 
 E quem era esta Floripes?
 Eu não sei porque não a vi, nem ninguém a viu, mas acreditava-se na sua existência sobrenatural.

 Minha avó dizia-me que era uma moira encantada, muito linda, que em determinadas noites aparecia ali a cantar e que no seu cantar chorado pedia que a desencantassem para lhe darem outra vez vida terrena e, ao que conseguisse, ela daria muita riqueza porque, sendo ela muito rica, casaria com ele. Porém, as condições para o desencantamento eram impossíveis a um simples mortal realizá-las embora demasiado afoito, forte e aventureiro para tentar tal empresa. Ele teria que ir a pé com um vela acesa até uma das ilhas e voltar, durante a maré vazia, que se mantinha. Se a vela se apagasse durante os trajectos, ele seria submerso pelas águas. O pior seria o encontro com a Floripes porque ela teria encantos tais que convenceria o mais medroso a arriscar-se ao desencantemento. Por isso, todos fugiam a passar no sítio onde ela costumava “aparecer”.

 Lenda é um “eco” dum facto passado, transmitido através de gerações, sempre com muita fantasia.
 Esta Floripes foi, para mim, uma lenda inventada. Se fosse um facto passado por exemplo: da prisão ou da morte de moira importante quando da conquista do Algarve aos moiros e muito chorada pelos seus familiares e esse desgosto trazido até nós com a fantasia do encantamento, não podia ser porque, quando a área de Olhão começou a ser habitada, já havia passado séculos sobre a conquista do Algarve por D. Afonso III e não havia no lugar moiros nenhuns.
 Devia ter sido alguém no século passado ou antes, talvez, até, com o sentimento altruista de evitar qualquer desastre na passagem por aquele local em noites escuras e sem qualquer iluminação e com água quase por todos os lados que metesse na cabeça das pessoas, o aparecimento da Floripes. O que é certo é que a coisa, transmitida de geração em geração chegou até hoje, não com o medo de outrora, porque o local já está iluminado e de fácil circulação, mas a curiosidade de saber-se o que foi.

 Os nossos homens do mar até há pouco tempo receavam a Floripes e eram muito poucos os que se aventuravam a passar de noite por aquele local.
 Receavam-na sinceramente e não só ali.
 Há um caso engraçado que me foi contado por um homem do mar da nossa terra, valente como poucos, muito mais velho do que eu e de quem fui amigo e que, sendo analfabeto e de vocabulário curto tinha imagens maravilhosas para as suas descrições.
 Este homem esteve na guerra de 14/18.
 Contou-me ele que passara pela cidade francesa de Ypres no dia seguinte ao do seu bombardeamento pela artilharia alemã. Perguntei-lhe se tinha ficado muito destruida, ele respondeu-me que sim, que não ficara inteira… olhe a cidade parecia uma pedreira. Até, nessa altura, dizia me ele, nos tínhamos vestido fardamento inglês. Então, retorqui, iam bem vestido… Bem vestidos… vá lá… mas calçados o céu dizia que sim mas o chão dizia que não. Tinham botas de solas rotas.
 O caso que teve graça, mas contado a distância do tempo e das pessoas, foi o que, estando ele e outro olhanense de sentinelas, num pequeno sector das trincheiras da Flandres, com a “terra de ninguém” plana e coberta de neve, em noite de luar, armados ate ao dentes, salvam a vida a uma mulher belga que escapara da zona alemã e correra para a trincheira deles, só porque julgaram ser a Floripes que eles nunca tinham visto, em Olhão, mas temiam.
 Este homem que fechou os olhos para não ver a Floripes e salvou assim, a vida da pobre belga, que de noite em fralda de camisa se arrojou a fugir dos alemães, este soldado olhanense foi um soldado valente e citado algumas vezes em campanha. Eu contei isto ao Abílio Gouveia e ele publicou num jornal local.
 
 E a Floripes?
 Ninguém me chegou a dizer que a tinha visto. Todos me diziam que “aparecia”, que “tinha ouvido dizer” que aparecia e nada mais. Perguntei a muita gente. Até perguntei a alguns mendigos que, à falta de casa para viverem, pernoitavam nas carcaças velhas dos barcos que estavam a apodrecer junto aos estaleiros. Nada, nem ninguém tinha visto nada, nem ouvido nada.
 É uma crendice sem qualquer fundamento. Nestas crendices viviam as pessoas
da minha terra e, sobretudo, os homens do mar incultos e valentes nas lides das vidas, mas generosos, ingénuos e supersticiosos.

Source
BARBOSA, José Visto e Ouvido em Olhão…Reflexões Olhao, Câmara Municipal de Olhão, 1993 , p.103-105
Place of collection
Olhão, OLHÃO, FARO
Informant
José Barbosa (M), Olhão (OLHÃO),
Narrative
When
20 Century, 90s
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography