APL 850 Santo Aginha

Há muitos, muitos anos, vivia na Serra d’Arga um perigoso salteador de estradas e casais, de seu nome Aginha. Por entre os arvoredos, caminhos e casas da Serra corria o temor de algum dia ser-se confrontado com tão perigoso meliante. A sua fama corria por todos os recantos, espalhando um misto de pânico e admiração. Já ninguém se atrevia a cortar a serra sozinho e, muito menos, de noite. Contavam-se histórias e histórias dos seus feitos, durante os serões da serra, ao calor das fogueiras. Os mais velhos, querendo o respeito e a obediência das crianças, ameaçavam com a presença do Aginha. Mas estas, depois da repreensão, preferiam brincar recriando as aventuras do malvado.
 Quando menos esperava, o viajante via aparecer-lhe pela frente, de punhal em riste e chapelão, o malfadado Aginha! E se não levasse consigo fazenda ou moeda, passava um mau bocado, porque o assaltante só desistia da presa depois de a esbulhar, nem que tosse da roupa que trazia. Qualquer gesto de autodefesa era suficiente para a aventura não ficar apenas pelo roubo. Ao maltratar as vítimas mais intimoratas, Aginha marcava a fronteira do medo, e justificava a impunidade conquistada. Descia um dia, ainda noite alta, um frade do convento de S. João para a missa da matina em Arga de Baixo, quando o meliante lhe saltou ao caminho. A escuridão confundiu-se no hábito do frade. Aginha só reconheceu o homem de Deus quando o confrontou em pleno caminho. Mas Aginha não era homem de grandes rezas, e seria muito mau para a fama conquistada, se não fizesse o que sempre fazia nestes casos. Por isso, apontando o grande facalhão ao pobre do frade atónico, exigiu o salteador:
 - A bolsa ou a vida!
 A normalidade da sua exigência deu com a anormalidade do caminhante. O frade nem tinha bolsa, nem se preocupava muito com a vida terrena:
 - Ó meu filho, não tenho nada de valor comigo, a não ser as pobres vestes de frade e a cruz que trago ao peito!
 De que lhe serviam tais «trastes»? Nem umas botas ele trazia! Aginha não sabia o que fazer, pois tal nunca lhe havia acontecido. Vendo-o assim sem jeito e mudo, o pobre do frade lá foi conversando com o salteador, usando palavras mansas e sábias, às quais, perplexo, o Aginha, sentado agora, respondeu com um longo silêncio. Ainda hoje ninguém sabe o que o frade lhe disse! O certo é que, em puro milagre, decidiu abandonar aquela vida de salteador! Caindo aos pés do frade, banhado em lágrimas de arrependimento, confessou os seus crimes e converteu-se. Como penitência, impôs-lhe o frade a missão de permanecer na serra, ajudando agora aqueles que antes havia maltratado.
 Poucos dias depois, passou por ali um lavrador, decidido a atravessar a serra com um carro de lenha. Ainda não era noite. Por isso, apesar de receoso, o nosso lavrador foi avançando apressado, como sempre fazia quando passava por tão mal afamado sítio. Na pressa não reparou numa grande pedra do caminho que, repentinamente, lhe tombou o carro em tremenda barulheira.
 Não podia o dia ser tão azarado! Como podia aquilo acontecer mesmo ali! Depois de soltar dois ou três palavrões, sempre olhando em volta, assustado, decidiu o lavrador que a única solução era levantar o carro e atrelar novamente os animais o mais depressa possível. Mas como podia fazê-lo sozinho?
 O estrondo do acidente atraiu Aginha. Vendo a incapacidade do lavrador, decidiu ir ajudá-lo, e assim dar cumprimento à penitência prescrita pelo frade.
Quando os olhos do lavrador deram com a figura conhecida do Aginha, sentiu que o sangue lhe fugia pelas pernas, e, por momentos, ficou petrificado, pois desconhecia a intenção do penitente. Julgava o lavrador que Aginha vinha para o maltratar, já que não o sabia convertido. Mais refeito da surpresa, e vendo-o sem guarda, pegou na machada de cortar a lenha, e desferiu-lhe um golpe na cabeça, que o matou.
 Angustiado por tão hediondo crime, apesar de se julgar em autodefesa, arrastou o cadáver para o matagal mais próximo, e regressou, ainda assustado, à aldeia.
 Passados dias, chegou à Serra d’Arga uma ordem do rei que prometia grande prémio a quem terminasse as aventuras do temível salteador, O lavrador, ao ter conhecimento desta ordem, e desejando fazer-se ao prémio, logo denunciou o seu feito heróico. Porém, chegados ao local onde tinha lançado o cadáver, povo e autoridades ficaram estarrecidos ao ver o corpo intacto! Aproximaram-se mais um pouco e, segundo dizem, sentiram que o corpo exalava um suave cheiro de flores silvestres, não obstante terem decorrido já alguns dias após o trágico desfecho. A estupefacção só ficou mitigada quando souberam, pelo frade, da conversão do ladrão. Imediatamente o povo aclamou Aginha como santo, construindo ali uma capela em sua honra.

Source
VILHENA, M. Assunção Gentes da Beira Baixa Lisbon, Colibri, 1995 , p.19-21
Place of collection
CAMINHA, VIANA DO CASTELO
Narrative
When
20 Century, 90s
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography