APL 187 Nossa Senhora do Cabo

A trajectória lendária da grande falésia do cabo do mundo, a que hoje chamamos de Espichel, começou cedo e desenvolveu-se em vários patamares. Se há sítio que transporte, ampliada e cimentada através dos séculos, uma tão rica carga do imaginário popular, este conta-se entre os privilegiados. Promontório Barbárico lhe chamaram os Romanos, mas, com mais justeza, na opinião de Frei Agostinho de Santa Maria, se lhe adequaria as denominações Promontório Luminoso ou de Santa Maria. Ou de Santa Esperança, como chegou a ser nomeado também. E tão luminoso que, no próprio dia em que Jesus Cristo nasceu, esta falésia se teria coroado de luzes, a festejar e a anunciar o acontecimento.
 A venerável imagem de Nossa Senhora apareceu cerca de 1215. Pertencia a um frade eremita de S. Agostinho, Hildebrando, que viajava numa embarcação mercante inglesa, que, quando se dirigia a Lisboa, foi apanhada, já noite cerrada, por tão violento temporal que nem o leme manobrava. Nesta aflitiva situação, quando todos se viam já ameaçados de se afundarem ou de se despedaçarem contra os rochedos, o frade pretendeu ir buscar a santa imagem para que, em conjunto, implorassem a divina protecção — surpresa, tinha desaparecido, com as alterosas ondas que invadiam a embarcação. Mas a sua fé naquela representação de Nossa Senhora era tão grande que, mesmo assim, incitou a que todos a evocassem de joelhos e se lhe recomendassem. Eis então que, de repente, forte luz rompeu o denso negrume da noite, como um sol, e amainaram os ventos e sossegaram as ondas. Com bonança, navegaram em direcção à luz e deitaram ferro junto à costa. Ao amanhecer, desembarcaram, curiosos de se inteirarem da origem da estranha e milagrosa claridade, e, subindo a escarpa, lá se lhes deparou, maravilhados, a precisa imagem de Nossa Senhora que havia desaparecido na véspera — fonte do luzeiro e da acção apaziguadora da intempérie. Em sinal de reconhecimento e de admiração, por entenderem que a Senhora tinha eleito aquele local, não a quiseram retirar e, nesse exacto lugar, construíram-lhe uma ermida, que Frei Hildebrando e o seu companheiro de viagem, Bartolomeu, fidalgo e também inglês, conservaram com reverente zelo.
 Mas também corre a lenda que a imagem apareceu no sopé da falésia e que foi uma jumenta que a transportou, no dorso, até ao cimo, deixando, assim, impressos na rocha as marcas dos seus cascos. Daí a designação de Santa Maria da Pedra da Mua que a imagem teve.
 Muitos anos volvidos, foram alguns homens da Caparica, que nestas paragens colhiam lenha, que (re)descobriram a imagem e a cultuaram.
 Mas o prodígio ia caindo no esquecimento, até que, cerca de 1410, um velho de Alcabideche vê, em noites sucessivas, uma enigmática luz, cintilante, lá longe, a irradiar do promontório. Pediu à Virgem que lhe explicasse o mistério. Então, em sonho, viu Nossa Senhora que lhe dizia que fosse ao Cabo, onde a acharia. E assim partiu o ancião. Transposto o Tejo, no caminho, encontrou uma anciã da Caparica que também vira a misteriosa luz e ia ao seu encontro. Era já tarde. Descansaram ambos, para, no dia seguinte, voltarem à caminhada. Mas a velha madrugou e logo continuou a jornada, até encontrar, por fim, a imagem luzente, perante a qual, encantada, se prosternou em sentida oração. O velho de Alcabideche, “que foi mandrião”, chegou depois. Ambos edificaram, então, uma capelinha com troncos e ramos de alecrim. E “voltaram para as suas terras espalhando a notícia de tão maravilhoso acontecimento. Alvoroçaram-se os povos e começaram a concorrer àquele promontório” — conta J. Ribeiro Guimarães.