APL 2866 Lenda do Senhor Justo da Piedade

Como sempre acontece, o espírito do povo joeira e adorna a tradição a seu bel-prazer. Das várias versões que conheço referentes à fundação da igreja do Senhor Jesus da Piedade, em Elvas, prefiro a que vou contar.
 
Ali, na estrada praticamente deserta, havia apenas um tosco cruzeiro, a assinalar o caminho. E no cruzeiro, um Cristo batido pelas chuvas e pelos ventos era o único farol de Fé a iluminar os viandantes desnorteados.
Ora, certa tardinha, vinham por aquela mesma estrada pai e filho, que regressavam de uma romaria. Vinham a discutir.
— Já te disse, José, que não deves proceder assim. Um rapaz da tua idade tem de portar-se como deve ser. De outro modo irás por mau caminho.
O rapaz mostrou-se azedo.
— Sabe que mais? Estou farto dos seus sermões. Fartíssimo! Julga que sou algum gaiato? Já tenho barba na cara, não o esqueça?
O homem retorquiu, zangado:
— E isso leva-te a deixares de ser meu filho?
O rapaz encolheu os ombros.
— Claro que não. Mas não estou disposto a andar agarrado pelos cueiros, como se fosse um mocinho!
— E que és tu, afinal, senão uma criança? Pelo menos a maneira como te portaste hoje de manhã assim o prova.
O rapaz teve outro gesto de enfado.
— Lá vem o pai outra vez com a mesma história! Que raio! Não sabe falar noutra coisa!
O sangue subiu às faces do velho.
— José, tem respeito pelo teu pai! Já tenho alguns anos em cima de mim, mas possuo ainda a mão bastante leve para...
O rapaz interrompeu-o.
— Deixe-se de lérias! Isso deve ser do vinho que bebeu a mais...
A cólera quase superou o homem.
— Que dizes, tratante? Insinuas que estou bêbedo? Tu é que bebeste demais! Parecias um odre sem fundo. E talvez fosse por isso que me quiseste roubar!
O rapaz deu um salto de desespero.
— Que está para aí a dizer? Olhe que a paciência tem limites! Já lhe afirmei que só quero aquilo que é meu! Ou pensa que todo o dinheiro da venda lhe pertence?
O homem gritou:
— Pois pertence! Enquanto for vivo, quem governa o dinheiro sou eu!
— Histórias da carochinha! Já não vou nisso, deixei de andar de olhos tapados! Já sabe: daqui em diante quero o meu dinheiro, para o governar como entender, ouviu bem?
— Endoideceste?
— Não, não endoideci quero o meu dinheiro! E que isto fique dito de uma vez para sempre!
Nesse momento preciso, pai e filho iam passando junto do velho cruzeiro. E aos ouvidos do rapaz soou uma voz semivelada:
— Teu pai tem razão. És o seu filho. Deves-lhe obediência. Terás de seguir sempre os seus conselhos…
O rapaz voltou-se, surpreendido.
— De quem é esta voz? Foi vossemecê quem falou?
O homem tambem se mostrou admirado:
— Falar, eu? Agora não disse nada… Não me deste tempo para isso!
Mas já o pai escutava, por seu turno, um murmúrio ao seu ouvido:
— Não sejas severo em demasia com o teu filho. Lembra-te de que já não é criança. Trata-o como um homem igual a ti, e ele compreender-te-á.
O homem olhou o filho.
— Quem está aqui a falar?
— Eu não! Também ouviu uma voz?
— Ouvi. Mas... aqui não está mais ninguém. A não ser...
— A não ser o quê?
Pai e filho olharam a imagem do Cristo de pedra. Mas logo o rapaz retorquiu, enfadado:
— Não me diga que julga que a fala vem dali.
E apontava com um arremesso de cabeça a imagem do Cristo.
— Sabe-se lá!
— Agora vejo que está realmente bêbedo!
O pai voltou a gritar:
— Cala-te, imbecil!
— Imbecil será vossemecê!
A cólera tingiu de vermelho as faces do velho.
— Ainda hoje não te livras de uma sova!
Num ar rufião, o rapaz provocou-o:
— Ora experimente!
Os insultos seguiram-se. Mas continuaram caminhando, deixando para trás o Cristo de pedra. E porque ambos iam toldados pelo vinho, o inevitável aconteceu. O dinheiro voltou a ser o fulcro da discussão. Como o pai negasse, o rapaz fez menção de lho tirar. O primeiro empurrão surgiu. O agredido respondeu. E num instante os dois homens lutavam como se não fossem do mesmo sangue. Como se o próprio vento tivesse ficado surpreendido, uivou na encruzilhada, batendo forte, também, no rosto dos contendores. O velho caiu por terra. O rapaz vencera. Sacou das algibeiras do pai todo o dinheiro e abalou correndo, deixando o pai a gemer dolorosamente.
Abandonado pelo filho no caminho deserto, o homem levantou-se depois de algum esforço. Chorando copiosamente, voltou para trás até junto do cruzeiro. Aí caiu de joelhos. Soluçava alto, como desvairado. Depois, um pouco mais sereno, sentindo viva a união do seu espírito ao Espírito Divino de Cristo, implorou:
— Oh meu Jesus! Tu, que também foste homem, abaixa o Teu olhar sobre mim e derrama sobre o velho que hoje sou a Tua Misericórdia! O meu filho, aquele que eu criei, roubou-me e faltou-me ao respeito. É um ladrão e talvez um assassino, pois pouco se lhe dá que eu morra para aqui, abandonado. Não sei voltar à terra onde vivi. Mas não queria morrer sabendo que ele é um ladrão. Salva-me, pois, e salva-o a ele! Salva o meu filho, e eu Te juro que todo o meu dinheiro será para construir aqui, neste local, uma capelinha digna de Ti, ó meu Senhor Jesus! Salva-nos! Desce o Teu olhar sobre nós, ó Jesus de tanta Piedade!
O vento zuniu mais forte sobre o silêncio que as palavras do homem deixaram ao extinguir-se. Mas logo outras palavras se ouviram:
— Tem fé, e ser-te-á dada a salvação!
O homem gritou:
— Senhor! E ele? E o meu filho?
A voz tornou, complacente:
— Escuta o seu apelo... Ele vem implorar-te perdão. Sê razoável... Perdoa as ofensas, como desejas que o Pai Celeste perdoe as tuas!
O homem curvou a cabeça. Chorava. De súbito ouviu-se uma voz que vinha de longe e se aproximava cada vez mais:
— Pai, meu pai, onde está?... Responda-me, meu pai!
O coração do homem bateu com violência. E gritou, rouquejando: 
— Filho! Estou aqui... junto ao cruzeiro!
O rapaz acorreu. Agarrou as mãos do pai e implorou:
— Por amor de Deus, perdoe-me e esqueça o que fiz! Eu devia estar louco! Se soubesse como sofro!
O homem encostou a cabeça grisalha ao ombro do filho, chorando. Mal se ouviram as suas palavras de perdão. Por fim, desencostou-se. Já não chorava. Perguntou, movido por uma estranha curiosidade:
— Filho! Porque voltaste?
O rapaz respondeu como se estivesse a recordar um sonho:
— Se soubesse o que me aconteceu! Quando ia a fugir, caí num barranco. Tão alto que nem sei como não me feri. Mas não conseguia sair de lá. De repente, senti medo. Um medo estranho. Tinha a sensação de ter caído vivo no Inferno. Foi nessa altura que me lembrei da voz que ouvi quando passámos por este cruzeiro. Então pedi ao Senhor Jesus que me salvasse, em troca do meu sincero arrependimento!
Calou-se o rapaz por alguns instantes. Depois, continuou:
— Mal havia feito este propósito... sem bem saber como... senti forças para erguer-me do barranco e vir até aqui!
O vento levou até à imagem de pedra do Senhor Jesus esta elevação da alma de um pai agradecido:
— Obrigado, meu Deus! Obrigado pela Vossa Piedade, meu Senhor Jesus Cristo!
Pouco tempo depois, a promessa feita em circunstâncias tão dramáticas, num local ermo e batido pelo vento, foi cumprida pelos dois alentejanos. Ali mandaram construir uma capelinha. Mais tarde, essa capela humilde nascida de um voto transformou-se na igreja sumptuosa que hoje existe em Elvas, em memória do Senhor Jesus da Piedade.

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume IV, pp. 83-86
Place of collection
ELVAS, PORTALEGRE
Narrative
When
18 Century,
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography