APL 2892 Lenda do Santo Milagre
Em tempos vivia em Santarém — segundo conta a lenda — um casal que se consorciava verdadeiramente por amor. Porém, como o imortal Luís de Camões dissera num dos seus sonetos
Amor com brandas mostras aparece,
Tudo possível faz, tudo assegura,
Mas logo no melhor desaparece...
Na verdade, também sem que eles se apercebessem, o amor entre ambos foi arrefecendo, criando vazios, transformando-se de traço de união em simples reticências...
E onde havia ternura passou a haver desdém, muitas vezes; e outras tantas vezes, onde havia certeza, passou a haver dúvida, simplesmente.
Enfim, dia a dia, a vida do casal ia-se azedando — e tornavam-se frequentes as cenas de má disposição e de incompatibilidade.
Uma noite, como tinha de acontecer fatalmente, a divergência entre ambos atingiu o ponto mais alto.
— Agora compreendo — sublinhou o homem, com um forte soco no tampo da mesa — agora compreendo porque quiseste casar comigo!... Tinhas em mira somente arranjar um marido, criar uma situação... Nunca pensaste sequer no amor!
Estarrecida, a mulher levou as mãos ao rosto e benzeu-se.
— Homem, não fales assim... Deus pode castigar-te!
Uma gargalhada de troça sublinhou a resposta:
— E já me castigou o suficiente... Ainda queres mais?... Sempre sonhei ter uma mulher que fosse tudo para mim… e afinal... afinal...
Ela avançou devagar, endireitando-se e ganhando altivez.
— Afinal o quê? Que pretendes tu dizer?
Foi colocar-se diante dele, olhando-o bem de frente.
— Só falta que me tortures com as tuas calúnias...
Ele desviou o rosto, mas não se calou.
— Ora, eu bem sei o que digo... Não é questão de calúnias... Chama-se a isto dizer a verdade!
Foi a vez dela ter uma risada seca de escárnio.
— A verdade? Diz antes: a tua verdade...
Ferido no íntimo, ele ergueu-se num ímpeto de fúria, deitando por terra o copo meio cheio.
— E achas que não tenho razão?
Caminhava para ela, ostensivamente.
— Achas que és a mesma dos nossos tempos de namoro, dos nossos primeiros tempos de casados?
E num quebrar de voz, num tom dorido, concluiu:
— O que tu mudaste, mulher!...
Mas logo, sem tréguas, ela volveu:
— Também tu mudaste tanto!... Eras meigo... Agora és ríspido... Eras submisso... Agora és um revoltado...
E terminou, também num tom dorido:
— Eras meu amigo... Agora, odeias-me!
O homem perdeu novamente a serenidade.
— Queres dizer talvez, ainda por cima, que eu é que tenho a culpa, não é verdade? — Respirou fundo, antes de continuar: — Pois estou farto disto tudo, percebes?
Encaminhou-se para a porta da rua, abriu-a, mas antes de sair ainda se voltou para gritar:
— Farto! A nossa casa transformou-se num inferno...
E rematou, sarcástico, agressivo.
— Prefiro viver na rua!
Saiu, batendo com a porta violentamente. Meio chorosa, a mulher não teve forças nem coragem para o chamar. Limitou-se a ficar no mesmo local e a unir as mãos numa prece, mais pensada do que dita:
— Oh, meu Deus, tende misericórdia de mim!... Tende misericórdia do meu marido!... Salvai-nos, meu Deus!... Salvai o nosso amor!
Deixou-se cair sobre a mesa, encostou a cabeça ao braço, e rompeu num profundo, desabalado pranto.
À medida que os dias passavam, mais largo e mais fundo era o abismo que separava essas duas almas, outrora tão amigas. Parecia que uma praga caíra ali, para lhes dar um autêntico calvário, um tremendo castigo.
Por fim, já desesperada, a mulher, vendo fracassar todas as suas tentativas de reconciliação (bem poucas, afinal, por se sentir ofendida na sua dignidade), resolveu consultar uma velha judia que morava na vizinhança e tinha fama de curar todos os males.
A velha vivia numa espécie de barraca mal cheirosa, e poucas pessoas ousavam aproximar-se dela, a não ser em transes de grande aflição.
Era uma velha muito velha, de idade indefinida. Nunca ninguém a vira fora da sua barraca e, todavia, ela conhecia a vida de toda a gente. Como e porquê? — eis um enigma difícil de explicar...
A mulher, cautelosamente, entrou na barraca e viu logo os olhos brilhantes da velha judia fixos nela. A sua voz tremeu.
— Venho aqui implorar-lhe que encontre remédio para a minha vida...
A mão descarnada da velha saiu dum monte de trapos e acenou-lhe.
— Fizeste bem em procurar-me, minha filha... Tudo tem remédio nesta vida... Senta-te... Senta-te aqui, junto de mim...
Embora constrangida, a mulher sentou-se. Aquele ambiente fazia-lhe mal, dava-lhe náuseas. Mas, já agora, não se queria afastar sem ouvir a velha. Tentou explicar então o seu fracasso:
— Eu fiz tudo o que me foi possível... Mas a verdade é esta: o meu marido já não quer saber de mim!
Calou-se. Custava-lhe dizer mais qualquer coisa. Aliás, a velha não precisou que ela continuasse. Pigarreou — talvez a querer sorrir — e afirmou na sua fala desdentada:
— Eu conheço a história!
A outra sobressaltou-se, sinceramente. Olhou-a, numa interrogação aflita, sem bem compreender.
— Mas... como sabe?... Como é que conhece?
A velha judia insistiu na sua risadinha seca:
— Ora, ora... Da mesma maneira que conheço todas as outras histórias que andam por aí, aos baldões da vida, sem procurar o caminho da salvação… que às vezes… é bem fácil...
Voltou a pigarrear. E aproximou o seu rosto da mulher que a escutava com um ar aparvalhado:
— Sim... conheço a tua história… conheço-te a ti e ao teu marido... Vivem na rua das Esteiras... aqui, em Santarém... Não é verdade?
A voz da mulher respondeu como um eco:
— É verdade...
Logo, num acréscimo de esperança, ela própria se inclinou também.
— E a senhora acredita… acredita que eu e o meu marido… ainda possamos voltar a ser felizes?
— Pois claro que acredito!... A judia sublinhou as palavras com uma das suas habituais risadinhas: — Deus fará por abrir os vossos olhos... os vossos ouvidos... e os vossos corações... Mas terás de seguir à risca o meu conselho!
Um frio de receio perpassou pelo corpo da mulher. Que conselho seria esse? Não se teria já aventurado de mais? Que diria o marido, se viesse a saber? Ao sabor dos seus pensamentos e diante do olhar firme e interrogativo da velha, limitou-se a balbuciar:
— Se for para o nosso bem... seguirei o seu conselho, custe o que custar...
A velha nada mais disse. Parecia ter adormecido repentinamente. A mulher teve ainda mais receio. Mas, depois, olhando o vulto da judia enroscada na roupa, compreendeu que ela estava a rezar. Uma reza longa e misteriosa, decerto, pois não conseguiu perceber nem uma só palavra.
— Quando quiser... dê-me o seu conselho...
— Um momento, minha filha, um momento! — Soou a risadinha seca. — Pronto... Agora escuta... Vai-te confessar e comungar... Mas não engulas a hóstia consagrada... Estás a ouvir?... Repara bem nisto que eu te digo, que é muito importante: não engulas a hóstia consagrada!... Esconde-a no teu lenço e leva-a para casa... É como se levasses o próprio Corpo de Deus... E Ele fará então o milagre porque tu anseias...
A mulher ergueu-se, de chofre. Para fugir, amedrontada? Para agradecer e sair calmamente? Nem ela própria sabia. Apenas disse em voz alta o seu pensamento:
— É tão estranho tudo isto... tão estranho!
— Faz o que entenderes, minha filha... Mas não te esqueças do que eu te disse... — E numa voz solene, que nem parecia ser a dela, ajuntou com certa ênfase: — A velha judia sabe sempre o que diz e o que faz!
A mulher saiu, desorientada, e foi para casa. Felizmente, o marido ainda não chegara — porque nesse dia seriam muitas, e justas, as razões para ele ralhar.
No outro dia, porém, a mulher não conseguiu resistir aos anseios que a dominavam. Arranjou a casa, deixou tudo pronto, e foi confessar-se e comungar para a igreja de Santo Estêvão.
O padre já a conhecia, pois ela comparecia fielmente às missas, e acolheu-a portanto de muito boa vontade.
— Então que te traz por cá?
— Meu padre... Quero confessar-me...
— Muito bem. Há já tanto tempo que não aparecias... Tens estado doente?
Ela baixou o rosto, para o sacerdote não lhe ver os olhos lacrimejantes.
— Sim, senhor padre… não tenho andado lá muito bem de saúde…
— E o teu marido, como vai ele? Há muito tempo também que não o vejo...
Ela preferiu cortar a situação. E foi direita ao fim da sua visita:
— Temos faltado aos nossos deveres de cristãos, é verdade... Por isso mesmo aqui estou, para pedir perdão a Deus.
O pároco pareceu compreendê-la.
— Fazes bem, minha filha, fazes muito bem... Só Deus nos pode perdoar. E só Ele nos pode proteger. Anda… vem comigo... Vamos para o confessionário.
Depois da confissão, a mulher ficou esperando pela missa. Mas, ao aproximar-se o momento da Sagrada Comunhão, a mulher lembrou-se mais do que nunca do conselho estranho da velha judia. Aflita, dizia de si para si:
— Meu Deus, não sei se deva seguir esse conselho... E se for pior para mim? Que devo fazer?...
Teve que decidir por si própria. Então, num rasgo de coragem, fingiu apenas que tomava a hóstia consagrada e escondeu-a com todas as cautelas, embrulhada no lenço...
Mal se levantou, correu logo para a saída, encaminhando-se rapidamente em direcção a casa. Tão depressa ia, e tão absorta nos seus pensamentos, que nem deu pelos pingos de sangue que iam caindo do lenço sobre as pedras da rua — segundo a lenda conta...
Ao chegar a casa, escondeu logo nervosamente, angustiadamente, o lenço e a hóstia numa antiga arca de roupa, já quase sem uso...
E ficou esperando... Esperando, nem ela sabia o quê... Mas as horas passaram, repassaram, e nada aconteceu.
O marido somente regressou já noite alta, como fazia agora habitualmente. Ela estava deitada, fingindo que dormia, embora sem sono algum. Ele não disse uma palavra. Deitou-se também. E também adormeceu ou fingiu adormecer...
Conta a lenda que daí a algum tempo ambos se soergueram, olhando-se espantados, pois escutavam dentro de casa — ali, bem junto deles — uma linda música que nunca tinham ouvido. Foi ele o primeiro a falar:
— Ouves? Estás a ouvir? Que será isto?
Ela agarrou-se convulsivamente ao marido.
— Tenho tanto medo... tanto medo!...
— Medo de quê?
Fechando os olhos para não ver, a mão trémula da mulher apontou frouxamente:
— Tenho medo que seja dali… da arca...
Ele olhou-a atónito, sem poder compreender.
— Que é que tu dizes? Da arca?... Endoideceste, mulher?
— Não endoideci, não... Eu conto-te tudo... Eu quero contar-te tudo...
E em breves palavras ela contou fielmente tudo o que se passara. Entretanto, a música acentuava-se, parecia transformar-se aos poucos num coro celestial. E da arca subia uma luz viva, brilhante, maravilhosa...
Então, ainda a medo, ambos se aproximaram. O homem abriu a arca de repente... Quedaram boquiabertos, deslumbrados. A hóstia era agora apenas uma luz divina. E por toda a casa havia um cântico de hossanas...
Num impulso irresistível, a mulher e o homem estreitaram-se. Era um abraço de amor e de felicidade, que os fazia regressar aos bons tempos!
Toda a noite ficaram orando junto da arca. Orando e agradecendo a Deus a graça que lhes fizera.
De manhãzinha, o homem correu a chamar o pároco de Santo Estêvão. E veio também o povo. E a notícia do milagre correu de boca em boca, de porta em porta, de rua em rua, por toda a cidade.
A hóstia consagrada voltou, em procissão triunfal, à igreja de Santo Estêvão. Diz a lenda que nunca mais houve qualquer desavença entre o casal enamorado. E a hóstia ainda hoje existe, encerrada numa âmbula de cristal, e é dada a beijar ao povo durante a famosa Feira do Santo Milagre, que ficou a celebrizar o acontecimento maravilhoso, todos os anos, no dia 12 de Abril, em Santarém, alma e coração do Ribatejo.
- Source
- MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume IV, pp. 307-312
- Place of collection
- SANTARÉM, SANTARÉM