APL 2856 Lenda do Milagre da Nazaré

O velho rei ergue a cabeça e olha. Olha e pensa. Pensa e revolta-se. Não se conforma com estar ali, quedo e aborrecido, enquanto seu filho Sancho anda correndo aventuras e perigos no Alentejo e no Algarve. E também enquanto o seu fiel D. Fuas Roupinho se bate, decerto como o valente que sempre é, em Porto de Mós, defrontando um inimigo muito superior em número e em forças...
Não, não está certo! D. Afonso Henriques, o já velho monarca que lançara as raízes do novo reino de Portugal, não pode esconder a sua impaciência.
 
Estamos no ano de 1180. Mais ou menos a meio do ano. Ficara combinado que el-rei não saísse de Coimbra sem que chegassem notícias de Porto de Mós, ou algum mensageiro dos campos do Alentejo e do Algarve, por onde D. Sancho passeava a sua ânsia de conquista. Mas para D. Afonso Henriques essa espera é longa demais. Para entreter a sua impaciência, percorre a largos passos as câmaras da alcáçova de Coimbra, que já caíra em seu poder. Assoma a uma janela e exclama:
— Porém, que posso eu fazer... senão esperar? Que Deus se amerceie do meu bom Fuas Roupinho e que ele volte depressa à minha presença!
O rei de Portugal retoma o seu passeio. Agitado e inquieto. Não é homem para estar parado. Não é homem para aguardar serenamente os acontecimentos.

De súbito, um clamor inesperado corre pelas ruas, espalha-se pela cidade e acaba invadindo o próprio paço.
Os sentidos do velho monarca ficam alerta. Será um novo ataque dos mouros?
A resposta não tarda a chegar, com o clamor alegre do povo. Clamor que sobe pela Couraça de Coimbra e que se precipita irresistivelmente ao encontro do velho rei.
E com o clamor vem D. Fuas Roupinho, alcaide de Porto de Mós, trazendo atrás de si um rebanho de mouros, prisioneiros e taciturnos.
— Bravo D. Fuas... Cheguei a recear por vós.
As palavras de el-rei são sinceras, e nelas se mistura a admiração e a amizade.
D. Fuas ajoelha respeitosamente aos pés do rei. Depois ergue-se e diz:
— Senhor, a mihha carne pode ser já velha, mas a moirama ainda não arranjou lanças capazes de me matar...
D. Afonso Henriques sorri.
— Sois sempre o mesmo, D. Fuas! Nem os anos nem as canseiras conseguem quebrantar vossa alma de lutador.
D. Fuas sorri também, ao responder:
— Aprendi convosco, Senhor! Com tal mestre, pena seria que eu saísse mau discípulo...
Foi a vez de rirem ambos. Sentando-se, e convidando D. Fuas a sentar-se, o rei de Portugal pede a D. Fuas que lhe conte tudo quanto se passara.
 
Em breves e simples palavras, D. Fuas Roupinho conta essa grande aventura.
Em certo momento, talvez porque ousara infiltrar-se demais no campo inimigo, vira-se cercado por forças muito superiores às suas. Reflectira um pouco. Desafiar o inimigo à luz do dia, seria imprudência. Valia mais esperar pela noite...
Assim, quando a noite chegou, arrastados por D. Fuas, os portugueses, poucos embora, num desses lances temerários em que a audácia esmaga o número, caíram de surpresa sobre os mouros, dominando-os por completo...
D. Afonso Henriques escuta-o em silêncio. Mas os olhos d’el-rei exprimem o seu contentamento.
D. Fuas Roupinho manda então que ali mesmo amontoem aos pés do rei de Portugal as armas, as bandeiras e os tesouros que a sua bravura e a dos seus homens tinham sabido conquistar.
Depois, manda que tragam também, pálido e desalentado, o próprio rei mouro Gamir, comandante do exército inimigo.
— Senhor meu rei... Aqui tendes igualmente a vossos pés, Gamir, rei infiel de Mérida, o qual ousou desafiar o vosso poder… Agora, ele é apenas vosso prisioneiro.
O rei mouro deu um passo em frente.
— Tu... Tu és esse Iben Erik de que tanto se fala?...
Faz-se mais pálido. A sua voz transforma-se num murmúrio.
— Agora compreendo!... Com um chefe como tu... com cavaleiros como os teus... nada mais poderemos fazer... Que Alá nos proteja!... Vamos perder todas as nossas terras... todos os nossos tesouros!...
E sem forças para mais, Gamir cai redondo no solo, enquanto um grito aflitivo ecoa pela sala.
— Pai!... Meu querido pai!...
Soldados adiantam-se para separar a jovem que se abraçou ao velho rei mouro, chorando convulsivamente. Mas D. Afonso Henriques suspende-os com um gesto. E logo ali ordena que sejam retiradas as correntes que manietam os dois vencidos, e que passem a ser tratados como verdadeiros cristãos, entregues à guarda de D. Fuas Roupinho.

Entretanto o tempo vai passando, e D. Fuas Roupinho recebe novos encargos do seu rei e senhor. Assim, por incumbência dele, dirige-se a Lisboa, onde apronta uma frota destinada a perseguir as galés sarracenas que infestam o mar.
Pela primeira vez na História, os Portugueses saem a lutar sobre as ondas do oceano. E embora ainda sem grande experiência, conseguem vencer declaradamente os Mouros, sem dúvida muito mais experimentados em batalhas marítimas, travadas ao longo da costa africana.

Foi esta a primeira grande vitória naval dos Portugueses. Animados pelo próprio triunfo, atrevem-se a ir mais longe. Sempre sob o comando do intrépido D. Fuas Roupinho, primeiro almirante de Portugal, avançam até às águas de Ceuta, depois de terem percorrido triunfalmente toda a costa do Sul. E de Ceuta voltam, trazendo apresadas inúmeras embarções mouras.  
A corte portuguesa veste galas para acolher D. Fuas Roupinho e os seus homens. O rei Afonso abraça o almirante vitorioso e diz-lhe:
— Ide para Porto de Mós, D. Fuas. Caçai e folgai a vosso gosto, que bem ganhastes o direito a descansar dos trabalhos da guerra.
Sem mostrar alegria nem tristeza, D. Fuas limita-se a dizer:
— Cumpro sempre as vossas ordens, sejam elas quais forem, Senhor!
 
Reza a tradição que, no dia seguinte, D. Fuas se encaminhou para Porto de Mós. E que ali encontrou a jovem princesa moura chorando a morte de seu pai.
Mal vê o alcaide, corre para ele.
— Senhor, senhor, nem sei como agradecer-vos... Mas o senhor meu pai pediu-me que o fizesse, mal vos visse... Fostes tão bom para ele e para mim!
D. Fuas Roupinho não consegue esconder a emoção.
— Graças, princesa. E conformai-vos com paciência. Foi Deus que assim o quis!
Ela ergue para ele os olhos, vermelhos de tanto chorar.
— Deus?... Dissestes Deus?...
E logo, num desabafo íntimo, acrescenta:
— Gostaria de conhecer o vosso Deus... E muito em especial a Mãe desse Deus, que dizem ser tão bom e tão generoso...
De novo, a emoção passa pelos olhos de D. Fuas Roupinho. As suas mãos acariciam os longos e negros cabelos da jovem princesa moura. E promete:
— Amanhã mesmo te levarei a ver a Sua Imagem... uma imagem que eu venero!
 
Cumprindo o prometido, manhã cedo, D. Fuas Roupinho leva consigo a jovem princesa moura e vai mostrar-lhe a imagem de Nossa Senhora, entre duas rochas, na Nazaré.
Pela primeira vez na sua vida, a filha do rei Gamir cai de joelhos diante de uma imagem cristã.
— É linda a Vossa Senhora... Muito linda!
E D. Fuas Roupinho conta-lhe então, docemente, a história maravilhosa daquela imagem.  
Um monge grego fugira com ela para Belém de Judá, dando-a a São Jerónimo. Este, por sua vez, mandara-a a Santo Agostinho. E Santo Agostinho entregara-a ao Mosteiro de Cauliniana, a uns doze quilómetros de Mérida. Aí puseram à imagem o nome de Nossa Senhora da Nazaré, por ela ter vindo da própria terra natal da Virgem Maria.
Quando os mouros derrotaram os cristãos, obrigando o rei Rodrigo a fugir para Mérida, Rodrigo levou consigo a preciosa imagem. Mas nem mesmo assim se sentiu absolutamente seguro. E resolveu fugir de novo, agora na companhia do abade Frei Romano, possuidor duma preciosa caixa de relíquias que pertencera a Santo Agostinho.
Após uma aventura dramática, quase mortos, os dois homens chegaram ao sítio da Pederneira, na costa do Atlântico. Então, resolveram separar-se.
Rodrigo ficou no monte que se chama de São Bartolomeu e Frei Romano foi viver para o monte fronteiro.
Combinaram, porém, corresponder-se por meio de fogueiras, que acendiam à noite.
Mas, certa noite, a fogueira de Frei Romano não se acendeu. Não mais se acenderia!
Rodrigo acudiu inquieto, e foi encontrá-lo morto. Apavorado, escondeu a imagem e a caixa de relíquias numa lapa, e abalou dali, correndo como um doido.
Segundo conta ainda a tradição, veio a morrer perto de Viseu, num sítio denominado Fetal...
Concluindo a sua história, D. Fuas Roupinho acrescenta, olhando a imagem:
— Só há bem pouco tempo alguns pastores a descobriram, e eu logo me tornei num dos seus maiores devotos. Venero-a com todas as forças da minha alma.
A jovem princesa parece alheada e distante. Olhos fitos na imagem, repete como em oração:
— É linda, a Senhora!... É linda, a Senhora!...
D. Fuas afaga-lhe a cabeça e diz-lhe meigamente:
— Olha, minha filha... Podes ficar aqui a adorá-la o tempo que quiseres. Eu vou caçar. Depois, voltarei a buscar-te.

E é então que se passa algo de extraordinário.
D. Fuas Roupinho monta e galopa pelo campo, quando vê de repente passar junto de si um vulto negro e estranho... É um veado! — pensa ele... Um veado, com certeza!
Sente-se feliz. Não poderia começar melhor a sua caçada. Para mais, um veado como nunca vira em toda a sua vida. Esporeia mais o cavalo. Não pode perder presa de tanto valor... Como num desafio, o veado torna a passar junto dele. Uma vez. Duas vezes. D. Fuas Roupinho sente irromper todo o seu brio. Pois um herói como ele, um homem habituado aos combates mais árduos, vai perder uma tão formidável peça de caça? Nunca! Há-de apanhar o veado, custe o que custar. Esporeia o cavalo até fazer sangue e aproxima-se da presa. Já falta pouco. Está quase a alcançá-lo... De lança em riste, já canta vitória...
Mas, de repente, vê a terra desaparecer sob as patas do cavalo... Está à beira dum precipício, a pique sobre o mar!... Um brado aflitivo sai-lhe da garganta, enquanto o cavalo se empina, relinchando desesperadamente, e o veado se some no espaço, desfazendo-se como fumo:
— Virgem Santíssima, valei-me! Valei-me, minha Nossa Senhora da Nazaré!
Por um instante (parece uma eternidade) cavalo e cavaleiro lutam sobre o abismo. Mas a Virgem ouvira decerto o apelo angustiado de D. Fuas Roupinho. E ele salva-se. Por milagre. Por autêntico milagre!
Nas rochas, ficam marcadas as patas traseiras do cavalo, sinais que ainda hoje ali se podem ver.  
D. Fuas corre ao local onde deixara a jovem princesa junto da imagem de Nossa Senhora. Encolhida a um canto, trémula, o rosto banhado em lágrimas, ela mostra-se aliviada ao vê-lo regressar.
— Oh, senhor, tive tanto medo!... Ainda bem que voltastes!... Passou por aqui um animal medonho... Parecia o Génio do Mal!
— Bem sei... Bem o vi...
E sem mais palavras de momento, o cavaleiro desmonta e ajoelha, rezando fervorosamente, a agradecer à Virgem o auxílio que lhe prestara. De que lhe serviria, afinal, ser um herói como era, se não tivesse a seu lado a protegê-lo a presença milagrosa de Nossa Senhora da Nazaré? Esse, sim, era o maior de todos os prodígios!
E enquanto se ergue, respirando fundo, como que a afastar os últimos temores, D. Fuas Roupinho confessa serenamente:
— Sim, jovem princesa… O monstro que passou por aqui, transformado em veado, era o próprio Demónio... Estive prestes a morrer, tentado por ele, mas Nossa Senhora salvou-me!
E, com súbito entusiasmo, acrescenta:
— Hei-de levar esta imagem para o local do milagre, para o sítio onde tudo aconteceu... Lá ficará, pelos séculos fora, como símbolo do misericordioso poder da Virgem!
E logo dali sai a cumprir a promessa. Às ordens de D. Fuas Roupinho — e, segundo se diz, ajudando-os por suas próprias mãos — pedreiros de Leiria e de Porto de Mós constroem a Capela da Virgem num sítio chamado da Memória, em memória de tão extraordinário milagre que salvara o almirante português de morte certa e brutal.
E a imagem da Virgem Nossa Senhora da Nazaré lá continua a invocar a lenda, atraindo todos os anos milhares e milhares de fiéis, por ocasião das afamadas e tradicionais festas da vila.

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume IV, pp. 9-14
Place of collection
Nazaré, NAZARÉ, LEIRIA
Narrative
When
1180
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography