APL 2821 Lenda do Cristão Cativo
Corria o ano de mil duzentos e sessenta e sete. Reinava em Portugal D. Afonso III. Eram frequentes os recontros entre cristãos e mouros. E assim, de todas as terras do novo reino (que se ia alargando e concretizando) se ofereciam homens de armas, dispostos a combater os infiéis. De Penamacor, segundo regista a História, também saíram alguns valentes...
Um deles, homem já amadurecido pelo tempo e pela luta, foi pedir à imagem de S. Domingos de Gusmão que o protegesse. Acompanhou-o sua filha. Ambos se dirigiram devagar até junto da referida imagem, que se venerava e venera ainda na capela da Sobreira.
Chegados lá, o homem ajoelhou. Humildemente. E rezou, falando mais do que orando.
— S. Domingos de Gusmão... Assim como meu pai vos pediu... assim como vos pediu o pai do meu pai... também eu vos peço que me protejais.
E sua filha, também com humildade e sincero fervor, implorou por sua vez:
— Oh, São Domingos de Gusmão!... Tende misericórdia de mim!... Fazei com que meu pai volte depressa!
Num suspiro, rematou a súplica:
— Vou ficar tão sozinha; meu querido São Domingos, tão sozinha!...
Houve uma pausa. Breve mas profunda. Breve no tempo. Profunda no pensamento. E o pobre pai num desespero de alma, rogou por fim:
— Senhor... Senhor São Domingos!... Terei sempre o vosso nome nos lábios e no coração, para me dar coragem!...
Palavras que encontraram eco num queixume da jovem filha, prestes a ficar abandonada:
— São Domingos, protegei-nos!
Pois conta a tradição popular que o valente homem de Penamacor, deixando um beijo de saudade na testa delicada e febril da sua filha, partiu, ousado e confiante, ao encontro das hostes cristãs que se propunhana expulsar os mouros para lá do Oceano...
A batalha foi tremenda. Em número muito superior, os mouros atacaram de surpresa o pequeno grupo de cavaleiros cristãos, e nem sequer os prodígios operados por estes conseguiram evitar a mortandade, a derrota, a tragédia…
E diz ainda a tradição popular que o homem valente de Penamacor ficou prisioneiro. Entre os cativos mais temidos pelos mouros, ele foi levado para as terríveis masmorras do Norte de África. Conhecendo bem a sua audácia sem limites, arranjaram para ele o mais cruel e feroz dos carcereiros. Um mouro selvático e impiedoso, que o perseguia constantemente com as suas vergastadas e com os seus sarcasmos.
— Com que então pensavam vencer-nos, vós, cristãos imbecis?!... Não perceberam ainda que somos nós os mais fortes, os mais poderosos, os vossos senhores?... Mas comigo não brincas tu, eu te garanto! Nem tu, nem os outros idiotas da tua raça!
Embora triste e desalentado, vítima dos maiores ultrajes, o homem de Penamacor nunca deixava de responder:
— Deus nos dará forças para conseguirmos, um dia, expulsar-vos a todos vós!
O carrasco mouro ria alvarmente:
— Estúpido! Nem sabes o que dizes...
Mas, certo dia, algo de estranho na atitude do prisioneiro obrigou-o a tomar novas disposições. Novas e piores.
— Ná, isto assim não me agrada!... Tu não és de confiança, não!... O melhor é prender-te com estas correntes... E, se for preciso, mandarei cortar-te a língua para sempre!
Soltou nova gargalhada de escárnio e desafio, onde transparecia o ódio.
— Depois sempre quero ver se o tal Deus de que tu falas te consegue livrar do cativeiro!...
E assim fez. O homem de Penamacor sofreu mais o suplício de umas pesadas correntes de ferro, que mal o deixavam dar passo.
Todavia, o mouro não pareceu ficar ainda satisfeito.
— O quê? Ainda consegues andar?...
E mirando-o e remirando-o bem, acrescentou, como se falasse consigo próprio:
— Hum! Preciso de ter mais cuidado contigo…
O prisioneiro agarrava-se com ansiedade à sua última tábua de salvação: a sua Fé! E baixinho, para que o outro não ouvisse, suplicava:
— Oh, São Domingos de Gusmão!... Peço-vos que não me abandoneis!...
Tanto repetiu os seus rogos, que o mouro acabou por desconfiar.
— Que dizes tu?... Que estás tu para aí a dizer?...
Disfarçando como podia, o cristão limitou-se a declarar:
— Nada. Não estou a dizer nada... Estou apenas a gemer. A gemer de cansaço… e de fome!
O mouro voltou a rir. Mas ainda não estava satisfeito. Descobrira um processo melhor e mais seguro para manietar por completo o pobre cativo.
— Sabes que mais, porco cristão? Vou meter-te naquela arca! Assim nunca mais conseguirás fugir!... Todas as noites fecho-te lá dentro, com as tuas correntes. Fecharei a arca à chave e deitar-me-ei em cima dela. Que te parece?...
O pânico no rosto do prisioneiro foi tão grande, que o mouro explodiu em gargalhadas.
— Sim, porco cristão! Achas que conseguirás fugir daqui algum dia?
Sem mais esperanças, o homem valente de Penamacor deixou-se cair no chão, murmurando:
— Que se faça a vontade de Deus!
E logo o mouro cruel rematou, sempre entre gargalhadas:
— Nada disso... Nada disso, miserável cristão! A vontade que se vai fazer não é a do teu Deus: é a minha!
E chamando os seus ajudantes, tão cruéis e impiedosos como ele, ordenou-lhes:
— Metam este cão cristão, com correntes e tudo, dentro daquela arca! Vamos, depressa!
Eles assim fizeram. E como as correntes pesavam muito, não voltaram a tirar o cristão de dentro da arca. O guarda limitava-se a levantar a tampa durante o dia, e a fechá-la assim que a noite começava a chegar...
Entretanto, em Penamacor, iam passando os dias e as noites, as semanas e os meses, sem que ali chegasse qualquer notícia do homem valente que partira para a guerra aos mouros. Sozinha, já minguada de chorar e de sofrer, sua filha foi de novo à capela da Sobreira.
— Oh, meu querido São Domingos de Gusmão! Venho oferecer-vos a minha vida, pois ela para nada me serve já. Sinto-me morrer aos poucos, meu bom São Domingos... Levai-me para o vosso lado!... Um só pedido vos faço: levai-me, sim, mas salvai o meu pai!
E o certo é que vem correndo de geração em geração que, nessa mesma noite, a jovem e dedicada filha do homem valente de Penamacor trocou as inquietudes da Terra pelas felicidades do Céu... E nessa mesma noite, o cristão cativo, encerrado na sua arca, teve a sensação nítida, espantosa, de que voava através do espaço...
Ao dar por tão extraordinário acontecimento, o feroz carcereiro mouro, deitado em cima da arca, gritou, apavorado:
— Que é isto?... Para onde me levam?... Socorro!... Socorro!... Pára arca maldita!... Pára aí!
Mas a arca voadora não parou. Guiada por mão invisível, continuou a atravessar o espaço, sobrevoando montes e vales, a terra e o mar. Até que chegou precisamente a Penamacor. E ali pousou de mansinho no solo, mesmo junto à capela de São Domingos de Gusmão…
Era manhã. A aragem fresca do nascer do dia tudo perfumava em redor. Cantavam os galos e repicavam os sinos.
Mal refeito do susto, o guarda mouro saltou de cima da arca e olhou em volta. Os sons que lhe chegavam aos ouvidos deixavam-no ainda mais aturdido e espantado. Cautelosamente, levantou a cabeça da arca, chamando pelo seu prisioneiro.
— Ouve lá, cristão... Cristão!
— Que há? Que queres?
— Diz-me: na tua terra há campanas?
O prisioneiro sorriu, num ar de desafio.
— Sim, na minha terra há sinos, a que tu chamas campanas... São os sinos que estão a tocar...
Agora era o mouro que tremia de medo. Balbuciava a custo:
— Nem sei o que pensar… Como foi possível tamanho prodígio?...
O homem valente de Penamacor recobrara a serenidade.
— É para que saibas, mouro, é para que saibas!... Quando Deus quer, não há impossíveis.
O mouro abriu por completo a tampa da arca e tirou dela o prisioneiro. E enquanto o soltava das correntes ia dizendo:
— Tens razão! Sim, tu tens razão!... Perdoa tudo o que te disse e o que te fiz… Agora compreendo: estamos na tua terra… daqui em diante, sou eu o teu prisioneiro!
Aspirando profundamente o perfume da liberdade, o cristão respondeu-lhe, sorrindo:
— Não… Não te quero como prisioneiro!
E apertando-o de encontro a si, ajuntou, num crescendo de alegria:
— Quero-te como amigo!... Como amigo, ouviste?... Foi isso que prometi a São Domingos de Gusmão, se ele me salvasse!
O outro fitou-o mais surpreendido do que nunca. Mais confuso do nunca.
— O quê? Pois não me matas?... Não te vingas das minhas crueldade para contigo?... De todo o mal que te fiz?...
O valente e bom homem de Penamacor abanou a cabeça.
— Não. Não preciso de matar... Não preciso de me vingar... Espera aqui por mim. Vou buscar a minha filha, a minha querida filha... Tenho tantas saudades dela!...
E partiu correndo, num alvoroço.
Dali a pouco, o mouro viu-o voltar. Já não corria. Vinha alquebrado e triste, olhos rasos de lágrimas. Mais velho. Mais velho e sucumbido do que após os longos meses que passara em tão duro cativeiro.
O mouro fitou-o, sem compreender tão súbita mudança.
— Que foi? Que te aconteceu, cristão?
Lentamente, a cabeça do valente e bom homem de Penamacor descaiu sobre o peito.
— Ela morreu!... Minha filha morreu para me salvar!...
A sua voz quase desapareceu, num murmúrio de angústia.
— Agora... Agora, ficarei sozinho para sempre!...
Foi a vez de o mouro abraçar aquele que fora seu prisioneiro, exclamando, emocionado:
— Sozinho, não! Se me permites, cristão, eu continuarei a teu lado. Serei o teu amigo, como tu disseste... O teu São Domingos fez o milagre que lhe pediste. Pois cumpre tu agora a tua promessa!... Cumpre a tua promessa!
O valente e bom homem de Penamacor ergueu o rosto, ainda banhado em lágrimas, mas já iluminado por uma alegria interior.
— Sim, é verdade... Vem a meus braços, irmão. Seremos dois eremitas ao serviço da ermida da minha terra! Louvado seja Deus!...
E reza a tradição popular que ambos viveram ali, em Penamacor, junto da ermida de São Domingos de Gusmão muitos e muitos anos, até que terminaram seus dias, tendo sido sepultados um ao lado do outro. E largos anos ali se viam, carcomidas pelo tempo, as lápidas que celebraram esse maravilhoso milagre de São Domingos de Gusmão — o milagre do Cristão Cativo — honra e glória de Penamacor.
- Source
- MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume III, pp. 89-93
- Place of collection
- PENAMACOR, CASTELO BRANCO