APL 2781 Lenda do Braço Direito Estendido
Mais uma vez, na senda das grandes aventuras heróicas de Portugal, a História e a Lenda dão-se as mãos, abraçam-se, confundem-se...
Isto aconteceu há quase trezentos e cinquenta anos. Mais de três séculos envoltos na bruma do passado. Mais de três séculos que guardam avaramente, ciosamente, o extraordinário acontecimento. E nós hoje em dia mal conseguimos destrinçar a verdade da fantasia, a História da Lenda...
Conta a História...
Tudo isto se passou em Lisboa naquela manhã de 1 de Dezembro de 1640. A cidade fazia a sua vida normal. Pelo menos, aparentemente normal. Mas o Terreiro do Paço regurgitava de coches. Todos com as cortinas corridas... E quando no velho relógio da Sé soaram, lentas e pesadas, as nove badaladas da manhã, logo todas as cortinas de todos os coches se abriram de repente. Muitos fidalgos armados, vindos dos mais diversos lados, correram a juntar-se em redor de Carlos de Noronha.
Ele olhou-os num relance. E, depressa lhes falou também.
— Ei-la, companheiros! É chegada finalmente a nossa hora... Avancemos desde já para o Paço, pois precisamos de desarmar os castelhanos e os tudescos.
E num gesto largo, impulsivo, apontou para a frente.
— Vamos, companheiros!
Sem palavras, irmanados pela mesma causa sagrada que ali os juntara, todos seguiram entusiasticamente D. Carlos de Noronha.
E daí a pouco tempo — o Paço era deles. Quem se poderia opor a essas dúzias de valentes dispostos a jogar a vida em defesa do seu ideal? Estavam prontos para tudo. Na sua maioria, esses homens tinham feito testamento, antes de jurarem o compromisso final. Um pequeno grupo dominara sem demora a guarda dos castelhanos. Outro grupo maior tomou conta dos alabardeiros, reduzindo-os a impotência.
Então D. Miguel de Almeida subiu a uma das janelas e falou ao povo, que vivia momentos de ansiedade e de nervosismo à volta padre Nicolau da Maia.
Entretanto, D. António Telo e mais alguns procuravam Miguel de Vasconcelos, o traidor. E vencendo a resistência de três sectários acabaram por descobri-lo, escondido, de clavina em punho, no fundo de um grande armário de papéis.
Aí mesmo o mataram, sem dó nem piedade, que ele não merecia. E logo lançaram o cadáver por uma das janelas abertas para o Terreiro do Paço, a fim de que o povo se certificasse, com os seus próprios olhos, do bom êxito da empresa…
Mais longe, sabendo o que se passava, sentindo o clamor da multidão e vendo em perigo o seu poderio, a duquesa de Mântua encaminhou-se ousadamente para os amotinados.
— Que é isto, portugueses? Onde está a vossa lealdade?
Foi D. Carlos de Noronha quem avançou para responder. Segurava a sua espada ainda tinta de sangue e tinha um sorriso irónico à flor lábios.
— Permitis, Alteza, que eu fale em nome dos meus companheiros?
Ela olhou-os, um por um. Felinamente. Raivosamente.
— Basta!... Já sabeis que o Ministro expiou os seus crimes… Que mais desejais agora?
Desta vez, falou D. Antão de Almada, avançando também para ela.
— Senhora, sim!... Miguel de Vasconcelos pagou com a vida a sua traição!
Mas nesse instante a fúria da duquesa cresceu.
— Calai-vos, já vos disse!... Aqui quem fala sou eu!... E falo em nome do meu rei… do nosso rei Filipe…
Houve uma risada de troça. De novo, D. Carlos de Noronha elevou a voz para dizer, em nome de todos os outros:
— Enganai-vos, Senhora… Nós só reconhecemos como nosso rei o senhor duque de Bragança. E já o proclamámos. De hoje em diante, será D. João IV de Portugal!
Atrás dele, as vozes uniram-se num pequeno coro, surdo mas incisivo.
— Viva D. João IV de Portugal!
A duquesa de Mântua olhou em redor. Procurava uma saída ou uma tábua de salvação? De qualquer modo, dirigiu-se para a janela.
— Já que vós não me quereis entender, falarei então ao povo… Ao povo e à guarda…
Mas, quando chegou junto da janela, viu que estava rodeada pelos conjurados. Era uma ilha de desespero no meio de um oceano de força.
— Senhora, não nos obrigueis a faltar-vos ao respeito!
Nem soube quem tal dissera. Porém a cólera fuzilou no seu olhar. No olhar e na sua voz.
— A mim?... Como vos atreveis?
Mais uma vez, D. Carlos de Noronha tomou a dianteira. E explicou, num tom rude mas sincero:
— Seremos obrigados a fazer Vossa Alteza sair por essa janela… se não quiser retirar-se por aquela porta!
Ela voltou a olhá-los. Já sem insolência nem superioridade. E agora foram os seus olhos que vergaram. Vencidos. Humilhados.
Sem mais palavras, a duquesa de Mântua saiu lentamente, acabruhada, pela porta que lhe apontavam...
Por toda a cidade correram as novas da grande vitória. O velho, e heróico, e destemido D. Álvaro de Abranches gritara ao povo, emocionadíssimo:
— Liberdade! Liberdade! Viva D. João IV! O duque de Bragança é o nosso legítimo rei! O Céu restituiu-lhe a Coroa, para que o reino de Portugal ressuscite! A promessa de Cristo a D. Afonso Henriques será cumprida! Vitória! Vitória!
E de boca em boca, de rua em rua, de casa em casa, a notícia foi ganhando ecos de apoteose. Já toda a gente sabia que Miguel de Vasconcelos fora morto e que a duquesa de Mântua estava prisioneira numa das salas do palácio...
E acrescenta a Lenda...
A cidade vivia um verdadeiro delírio de euforia patriótica, tendo como fundo a música vibrante e clamorosa de todos os sinos de Lisboa, tocando alegremente.
Dizia-se que D. Antão de Almada, ameaçando de morte a duquesa de Mântua, vice-rainha de Portugal, conseguira que ela assinasse uma ordem para que D. Luis del Campo entregasse o castelo de Lisboa aos Portugueses — e que ele assim o fizera prontamente, sem a mais leve hesitação ou o mínimo esboço de rebeldia. E que logo a seguir tinham sido entregues também aos conjurados, pelos seus governadores, os fortes de Belém, Cabeça Seca, Santo António e o castelo de Almada.
Era, na verdade, o triunfo total!
Já então D. Rodrigo da Cunha, arcebispo de Lisboa, rezara missa em acção de graças, na Sé Catedral. E acompanhado por todos os cónegos do cabido organizou uma emotiva procissão, que saiu pela porta grande da Sé…
Nessa altura chegavam os conjurados, envoltos pela onda frenética do povo de Lisboa. Traziam consigo a bandeira real, autêntico símbolo da Pátria Libertada. Tinham ido buscá-la ao Senado. E foi ainda D. Carlos Noronha quem se antecipou aos outros, dizendo ao arcebispo D. Rodrigo da Cunha, com voz plena de emoção:
— Senhor, a vitória é nossa! E todos nós resolvemos entregar o poder em vossas mãos enquanto el-rei D. João IV não chegar a Lisboa.
Havia lágrimas em muitos olhos. Gargantas cansadas de gritar, mas que desejavam gritar ainda mais. Mãos que se apertavam nervosamente, numa ansiedade de luta. Corações descompassados.
Abriram-se alas para o arcebispo passar ao encontro da bandeira. Tremia a voz do velho prelado, ao dizer:
— Apraz-me saber que triunfastes, meus amigos, meus irmãos em Cristo! Foi Deus que assim o quis! Portugal é dos Portugueses e para os Portugueses!
E logo, irresistivelmente, um clamor se ergueu, gigantesco, impressionante, a espalhar-se por toda a cidade:
— Liberdade! Liberdade! Portugal é nosso.
O arcebispo olhou docemente a multidão que o rodeava. Conhecia muitos deles. Era amigo de muitos deles. Confiava em todos eles.
— Meus amigos, meus irmãos... Se assim o desejais, eu tomarei conta do poder... Mas ele é pesado e grande demais para ombros tão frágeis como os meus... Queira Deus que o nosso rei D. João IV não demore em vir tomar nas suas mãos o que lhe pertence, por vontade dos Portugueses!
Todos os que ali se encontravam baixaram a cabeça em silêncio espontâneo. Silêncio de respeito. Silêncio de oração.
Depois, D. Carlos de Noronha, como que num reflexo da vontade dos outros, ergueu de novo a voz para pedir:
— Senhor... em meu nome… em nome dos meus companheiros... vos rogo um grande favor... Lançai a vossa bênção sobre nós, senhor! Lançai a vossa bênção sobre o bom povo de Portugal!
Houve uma breve pausa de expectativa.
Sempre docemente, o arcebispo D. Rodrigo da Cunha volveu a sorrir. Sorriso de ternura. E a sua cabeça embranquecida moveu-se lentamente, como que a recusar.
— Quem sou eu, meus irmãos, nesta hora excepcional de Fé e de Virtude, para vos poder abençoar?... Sim, quem sou eu?
E baixando a voz, tornando a sua confissão mais íntima, ele próprio respondeu:
— Sou apenas um português como vós… um servo de Nosso Senhor Jesus Cristo!
E então, perante o ar interrogativo dos outros, ajuntou num impulso de energia e de bom senso:
— Ele sim, meus irmãos, ele é que nos deve abençoar!
Vagarosamente, misticamente, como que em êxtase, D. Rodrigo da Cunha, o venerando arcebispo de Lisboa, ergueu os seus olhos para a imagem de Jesus Crucificado. E implorou, do fundo da sua alma, mais com o coração do que com as próprias palavras:
— Senhor, Nosso Deus e Nosso Pai... Para maior glória e felicidade nossa, abençoai-nos!... Abençoai esta boa gente portuguesa, martirizada por sessenta anos de cativeiro, mas que nunca deixou de acreditar em Vós... Abençoai-nos, Senhor!
E — prodígio dos prodígios — ele viu… viram todos quantos ali estavam... que o braço direito de Jesus Crucificado se desprendia suavemente do lenho e se estendia sobre a multidão, que ajoelhou de repente, abençoando-a para sempre! Abençoando a sua vitória! Abençoando o seu futuro!
Por momentos, ninguém se moveu. Todos pareciam petrificados. Alguma coisa lhes embargava as vozes e os movimentos. Choravam e rezavam em silêncio. Mas, de súbito, um ergueu-se. E logo outro. E outro ainda. E todos, afinal. Abraçando-se e gritando:
— Milagre! Milagre!...
Agora, a vitória estava certa, absolutamente certa! Portugal não mais voltaria a deixar de ser Portugal!
- Source
- MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume II, pp. 147-151
- Place of collection
- Sé, LISBOA, LISBOA