APL 2895 Lenda da Virgem Enterrada

Por ali, cerca da serra da Estrela, vivia em tempos distantes um piedoso fidalgo, de nome D. Estêvão Coelho. E aconteceu que esse fidalgo foi atacado por uma das doenças mais terríveis do mundo: a lepra.
O pobre homem passou a viver no meio do maior desespero.
— Eu morro... Eu morro, roído por esta praga maldita que caiu sobre mim!
Sua esposa, dedicada companheira de sempre, tentava confortá-lo:
— Então, homem, tem fé!... Peço-te por tudo! Nossa Senhora, em que tanto confias, há-de valer-te, certamente!
Entre dois suspiros, o enfermo confessou o receio que lhe ia na alma:
— Nossa Senhora já não gosta de mim...
Logo a esposa retrucou com energia:
— Não digas blasfémias, Estêvão!
E mais misericordiosa, mais terna, mais persuasiva:
— Tens de pedir perdão a Nossa Senhora, Estêvão!... Estás a ofendê-la!
O fidalgo caiu para trás, sobre o leito, num desânimo total, agravado pelo arrependimento.
— Tens razão! Só tu, minha esposa, me podes compreender, na verdade...
E ela, num sorriso de amor, completou, emendando-o suavemente:
— Só eu, não!... Melhor do que eu, compreende-te a Virgem Santíssima, com certeza!
Depois, tentando acomodá-lo no leito e sossegá-lo, aconselhou:
— Vamos... Deita-te e reza, Estêvão! Muitas vezes, bem sabes, Deus põe à prova a nossa confiança e a nossa fé...
O homem teve um novo impulso de revolta:
— Mas eu... eu nada fiz para merecer isto!... Porquê?...
A voz tornou-se um gemido:
— Mais valeria morrer... do que sofrer assim!
— Então, Estêvão, voltamos à mesma?... Acalma-te, por favor!...
Aconchegou-lhe a roupa e ajudou-o a deitar-se melhor.
— Vou apagar a luz, para que fiques sozinho e em silêncio... E dorme um pouco... Far-te-á bem!
O fidalgo soltou um fundo suspiro e disse:
— Deus seja louvado por ter escolhido para mim companheira tão boa como tu!
A sua voz readquiriu a calma, voltou a ser serena e confiante:
— Apaga a luz, como disseste... Vou rezar e penitenciar-me!  
E conta-se que D. Estêvão Coelho, depois de rezar fervorosamente, adormeceu. E teve um sonho estranho...

Viu uma senhora, muito jovem ainda, iluminada por uma luz divina, que lhe sorria e avançava para ele, dizendo-lhe meigamente:
— Estêvão, eu quero proteger-te, porque essa é a vontade de Deus, Nosso Senhor!... Mas, para isso, tens de me encontrar... Eu estou enterrada na mata da Vagueira, junto da vila de Vagos, quase em frente do mar... Foi aí que me escondeu um capitão francês quando o seu navio se despedaçou na costa de Portugal e ele apenas pôde salvar do naufrágio a minha imagem...
Da sombra, aos poucos, foi surgindo um vulto que se corporizou diante dos olhos da alma do enfermo. Era o tal capitão francês, que asseverou com firmeza:
— É verdade, Senhora! Posso confirmá-lo pela Graça de Deus!... Salvei a Vossa Imagem, no meio da pavorosa tempestade, e corri a esconder-Vos na mata, como o meu maior tesouro!... Mas, depois, pedi que Vos procurassem, Senhora, e até hoje ninguém Vos conseguiu descobrir!
Tal como surgira no espaço, o vulto do capitão francês desapareceu na sombra. Ficou somente a jovem iluminada sobrenaturalmente, que sorriu e continuou.
— Ouviste, Estêvão? Ouviste a voz do capitão francês que já morreu há tanto tempo?... Pois vê tu se me consegues descobrir... E acredita que eu te curarei por completo!
 
Em alvoroço emocionado, D. Estêvão Coelho contou à sua esposa, na manhã seguinte, o sonho que tivera. Ela limitou-se a sorrir, e perguntou:
— Que pensas fazer então?
O homem não hesitou na resposta:
— Partir imediatamente!
A esposa, docemente, ainda contrapôs duas razões bem poderosas:
— Mas a viagem é longa e difícil... E tu estás tão fraco!...
Porém, nada o podia demover dos seus propósitos. Com um entusiasmo que nunca tivera até então, D. Estêvão Coelho retorquiu:
— Que importa?... Agora sinto forças para ir até ao fim do mundo!
E num ar solene, quase em êxtase, ele prometeu:
— Hei-de encontrar a Virgem enterrada, Nossa Senhora de Vagos, custe o que custar!... E se Ela me curar, como afirmou, erguerei uma capela em Seu louvor!
Pegou no Livro Sagrado que se encontrava à cabeceira e rematou com ênfase:
— Aqui o juro sobre a Bíblia!

Pouco tempo depois, D. Estêvão Coelho e sua devotada esposa partiram numa carruagem puxada por possantes cavalos, a caminho de Vagos.
A viagem decorreu sem novidade até já perto da vila, junto ao Soalhal. Mas ali deparou-se-lhes de súbito um obstáculo quase impossível de vencer: um grande braço de mar, sem qualquer embarcação à vista...
Foi a vez de a mulher de D. Estêvão se mostrar desanimada.
— Que pena, Estêvão! Agora, que estávamos quase a chegar ao pinhal...
Mas o fidalgo não desanimou.
— Eu não desisto, de modo algum!... Trago comigo uma fé interior que não me deixa esmorecer... Irei a nado se for necessário!
A esposa tentou dissuadi-lo:
— Isso é uma loucura, Estêvão!... Eu acredito na tua fé, e a fé pode fazer prodígios... Mas neste caso é impossível, Estêvão, completamente impossível! Não podemos passar!
O fidalgo libertou-se suavemente das mãos que o seguravam, caiu de joelhos na terra fofa e exclamou:
— Oh, Senhora de Vagos, que me aparecestes naquela noite em sonhos, e fizestes renascer a confiança dentro de mim!... É o Vosso auxílio que eu imploro nesta hora de ansiedade... Ajudai-me, Senhora, e se vos encontrar, tal como prometi, farei erguer aqui uma capela em Vossa honra!
E então, conforme se assegura ao correr dos séculos, nesse mesmo instante as águas afastaram-se milagrosamente, abrindo um caminho por onde passou à vontade a carruagem que transportava o fidalgo devoto e sua mulher.
E também, por indiscutível revelação divina, D. Estêvão Coelho parou precisamente no local que buscava com tanta ansiedade. E, quer fosse verdade, quer alucinação do seu espírito excitado, julgou ouvir a seu lado a mesma voz do sonho, que lhe dizia:
— É aqui mesmo, Estêvão... aqui me deixou o capitão francês, e ninguém me descobriu até agora, por falta de fé, ou por falta de coragem... Procura tu bem, e tu me encontrarás!
E assim aconteceu, na verdade. Guiado pela inspiração, depressa D. Estêvão Coelho encontrou a sagrada imagem, enterrada pelo piedoso capitão francês.
O seu entusiasmo foi tão grande que não conseguiu refrear a alegria. Erguendo a imagem no ar, exclamava:
— Ei-la! Ei-la! E que linda que Ela é! Oh, minha Nossa Senhora, como vos agradeço esta prova de confiança no mais indigno dos vossos filhos!
Mas estacou, vendo que a mulher o olhava de olhos arregalados, apontando para ele e dizendo:
— Estêvão!... Estêvão!...
— Que é, mulher? Porque me olhas assim?
Respirando com dificuldade, ela conseguiu por fim explicar:
— Olha para as tuas mãos... Apalpa a tua cara... Olha bem para ti!
Caiu-lhe nos braços, chorando e rindo ao mesmo tempo.
— Estêvão! Estêvão! A tua lepra desapareceu... Desapareceu por completo! Estás curado!
Era verdade. O rosto e as mãos do fidalgo estavam limpos de todas as chagas! Ele tornou a ajoelhar, erguendo os olhos e as mãos ao céu.
— Será possível tamanho milagre? Mal encontrei a imagem de Nossa Senhora fiquei curado! Curado!...
Lágrimas de alegria corriam-lhe nas faces.
— Nem sei como agradecer-Vos, minha Nossa Senhora de Vagos!
Logo no dia seguinte, por ordem de D. Estêvão Coelho, se iniciaram as obras para a construção da capela de Nossa Senhora de Vagos.
Mais tarde, já depois de inaugurada a capela, com grandes festas e solenidades, quando D. Estêvão Coelho sentiu aproximar-se a hora da sua morte, pediu aos que o rodeavam:
— Deixem-me ficar sempre... sempre... ao pé da Nossa Senhora de Vagos!
E antes de morrer, fosse ilusão ou verdade, ouviu de novo a mesma voz do sonho, que lhe dizia meigamente:
— Fica descansado, Estêvão. Eu não deixarei que me separem de ti! Na realidade, segundo testemunhas idóneas, quando tempos após se construiu o actual santuário de Nossa Senhora de Vagos, por quatro vezes trouxeram a imagem da capelinha antiga, e por quatro vezes ela voltou para lá misteriosamente… porque sempre se esqueciam de trasladar também os ossos de D. Estêvão Coelho…
Segundo os mesmos testemunhos históricos, quando os ossos do seu primeiro devoto mudaram para o santuário, logo a Senhora de Vagos ficou sossegada e satisfeita, continuando os seus portentosos milagres.


Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume IV, pp. 333-336
Place of collection
VAGOS, AVEIRO
Narrative
When
17 Century,
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography