APL 643 A Confusão das Portas
Trinta e um de Dezembro, noite alta, o frio corta e vento ruge! Perpetuando velhos costumes da Beira Baixa, as famílias de Benquerença, reunidas e aconchegadas ao lume crepitante da lareira, evocam as melhores tradições da sua terra, velhas lendas e contos de mouras encantadas e — consequência da festa maior da época — relembram a vida, em pormenores, do Menino Jesus.
Em quase todos os patriarcais concílios, há um santo ou uma santa avózinha, queixo a juntar-se ao nariz, faces enrugadas e cabelos brancos, a contar aos filhos e aos netos o que já seus avós lhe transmitiram em idênticas noites de fraternal convívio.
Ouçamo-los:
— «Numa cabana dos arredores de Belém, onde Nossa Senhora pernoitara por não haver lugar na cidade, nasceu o menino Jesus.
A noticia, obra de Deus, foi levada pelos anjos a todos os pastores das redondezas, que não se demoraram a vir a adorá-lo.
A fama correu. Por toda a parte constava já que viera ao mundo o Rei dos homens, o Salvador da humanidade.
O que haveria de verdade em tão sensacional noticia?
Herodes, senhor da Judeia, resolveu consultar os Doutores.
— Efectivamente — disseram estes — segundo a profecia, Jesus Cristo, Senhor que será rei de Israel, nascerá em Belém!
Perante tal resposta, Herodes ordenou que, imediatamente, partissem emissários á procura do Menino e o trouxessem à sua presença.
Emissários partiram, efectivamente, mas, por mais que andassem, por mais que procurassem e percorressem montes e vales, não obtiveram noticias d’Ele.
Quis o acaso que um dos perseguidores, depois de muito andar, de muito procurar, descobrisse, já boca-noite, o rasto da Sagrada Família.
Estava-se no sétimo dia depois do nascimento.
Para não perder o sitio (anoitecia e encontrava-se em terra estranha) correu a atirar uma porção de farinha á porta, partindo imediatamente em procura dos companheiros.
Estava descoberto o mistério! As ordens de Herodes iam ser cumpridas e, consequentemente o Menino Jesus levado à sua presença.
Encontrados os companheiros, inebriados de alegria pela notícia da descoberta, dirigiram-se todos, apressadamente, em procura da porta enfarinhada. Percorreram uma rua, outra rua, ainda outra, muitas, umas após outras, sem que a porta aparecesse! Nisto, deu a meia noite, e, rapidamente — milagre de Deus — todas as portas apareceram marcadas com farinha!
Onde a morada de Jesus?
Atónitos, tocados de força estranha, fugiram!
Confundidos e amedrontados, abandonaram Belém!
— Obra de Deus! Obra de Deus!...
Bendito, louvado e adorado seja para todo o sempre! Assim rematam os santos velhinhos que, lágrimas nos olhos, incutem em filhos e netos a devoção e o amor pelo Menino Jesus.
A meia noite está próxima.
Rapazes e raparigas deitam farinha branca, alvinitente, às mãos cheias, em pratos e tigelas.
O vento ruge, o frio é de enregelar; mas, ao cair da meia noite, afrontando o vendaval, lá andam eles, aos magotes, de porta em porta, de rua em rua, desenhando cruzes e também ramos e outros ornamentos, recordação de que, na oitava noite depois do Nascimento, há mil e tantos anos, Herodes procurou inutilmente o Menino, operando-se o Milagre da confusão das portas.
E todos os anos, pelos séculos dos séculos, na noite do Ano Novo, lá andam, há hora da meia noite, rapazes e raparigas da Benquerença, perpetuando a tradição, tão encantadora e tão bela, da salvação do Menino Jesus, a enfarinhar as portas.
- Source
- DIAS, Jaime Lopes Contos e Lendas da Beira Coimbra, Alma Azul, 2002 , p.20-22
- Place of collection
- Benquerença, PENAMACOR, CASTELO BRANCO