APL 1591 A Zorra Berradeira
O povo do Algarve fala da zorra berradeira com medo horrível. Diversas são as opiniões que correm a respeito desta entidade malfazeja.
Uns afirmam que a zona berradeira é uma transformação de moura encantada. Certa moura encantada, desejando escapar-se aos funestos efeitos do encantamento, rebelara-se contra Allah que a castigou, desgarrando-a e tornando-a objecto de ódio de toda a gente, mouros e cristãos.
Outros sustentam que aquele ser horrível é a alma penada de uma velha, em vida muito má, e que respondia a quem lhe censurava a sua vida escandalosa:
— Neste mundo anda-se como se quer. Porque no outro nada podem saber.
De noite, a deshoras, tem muita gente ouvido berrar, nos cumes dos mais agrestes serros, a zorra fatal. Vista de longe parece uma cabra, de mais perto uma imunda ave, de enormes dimensões, com as asas manchadas e sujas. É o verdadeiro retrato das arpias de outras eras.
Pessoas há que têm sido acometidas de noite pela zorra berradeira e se tem visto em grande perigo. Salta sobre o indivíduo com uma força enorme e no mesmo momento, como um velo arremessado pela força do vento, vai pousar sobre o serro mais alto. Exala de si um vapor imundo e nojento e, berrando, atroa serros e vales.
Em muitos concelhos do Algarve é a zorra berradeira muito mais temível do que as mouras encantadas ou de que as bruxas.
Parece que nos seus berros só anuncia desgraças e maldades.
Enquanto as Gens ou Jens são uns seres bem fazejos e queridos, a zorra berradeira é má e odiada por toda a gente.
A zorra berradeira é verdadeiramente a transformação das fúrias dos
antigos. É tão má como estas e como estas igualmente temida.
Quando alguém tem a infelicidade de ouvir de noite a zorra berradeira, conta logo com desgraça em casa.
Em certa noite adoeceu repentinamente certa velhinha muito estimada no sítio. Chamado o médico, declarou que nada encontrava na velhinha, cujo pulso estava regular.
— Não é coisa de cuidado, disse-lhe o médico.
É sim, senhor: morro esta noite e quero-me confessar.
O médico riu-se. A velhinha confessou-se e morreu duas horas depois da confissão.
Declarou antes de morrer que ouvira nessa noite a zorra berradeira.
Em uma noite seguia um sujeito, forte e animoso, para sua casa, ouviu, ao longe, os berros da zorra maldita. Para provar que a não temia, arremedou-a nos berros. A zorra, embora a enorme distância, de um salto, caiu sobre o infeliz, que tentou resistir-lhe.
Qual resistir! Apesar do inimigo não ter carne, nem osso, nem barbatanas, moeu-o tão horrivelmente que, ao chegar a casa, caiu morto entre portas.
Foi observado todo o corpo: não tinha a mais pequena equimose, a mais insignificante mancha ou nódoa.
Quando se pergunta a alguém onde reside a zorra berradeira, responde imediatamente:
— Em Odelouca.
Odelouca é uma ribeira que vem desaguar no rio de Portimão.
Há ocasiões em que a zorra berradeira se converte em um verdadeiro flagelo no concelho de Monchique. Os habitantes dos sítios da Odelouca não se atrevem a sair de suas casas, à noite.
E o povo receoso e cheio de medo crê supersticiosamente nestes e noutros seres, não obstante ser católico, apostólico romano.
O nosso povo é a mesma entidade de todos os tempos: essencialmente politeista.
Podem chamar aos politeistas inconsequentes mas, por Deus, não lhes neguém o profundo conhecimento do espírito humano. Eram profundos em psicologia.
- Source
- OLIVEIRA, Francisco Xavier d'Ataíde As Mouras Encantadas e os Encantamentos do Algarve Loule, Notícias de Loulé, 1996 [1898] , p.235-236
- Place of collection
- MONCHIQUE, FARO