APL 1891 O Lobisomem
Quando eu era pequeno, uma d’as histórias que mais me faziam eriçar os cabelos era a do lobisomem.
Aquele monstro, meio animal, meio homem, galopando na estrada pelas altas horas da noite, fazia-me tremer de medo, porque a sua história era medonha, como todas as almas tisnadas para quem as portas do Céu estão fechadas a sete ferrolhos.
Como é sabido, há uma lei fatal criada pela voz do povo, que é a voz de Deus, que diz: Toda a mulher que tenha treze filhos machos a seguir, sem dar à luz nenhuma fêmea, um deles, geralmente o mais velho, tem de cumprir a sina de ser lobisomem durante treze anos. Esta lei, que não é nova, porque gente de cabelos brancos me tem dito que os seus avós já a ouviam contar nos serões de sua infància, tem feito muitos lobisomens, e um deles é o filho de um ferreiro, cujo fado vos vou contar.
Chamava-se Valério. Alegre quando criança, a sua alegria foi-se-lhe volvendo em tristeza, com o decorrer dos anos. No dia em que sua mãe deu à luz o décimo-terceiro filho, os restos de jovialidade, que ainda lhe pairavam no rosto, mudaram-se de súbito em um riso tão amarelo e terrível como o rir de mil demónios. É que Valério sonhara todos os anos, no dia do seu nascimento, que a sorte o destinava a ele a cumprir a sina maldita.
E nesse dia, dia de tristeza e lágrimas para uma família, medo e benzeduras para um povoado inteiro, Valério, soltando umas pragas, que pareciam palavras ensinadas pelo Demónio, partiu sàzinho pela estrada fora, talvez caminho dos Infernos.
Desde o dia em que Valério partiu, a casa do ferreiro, principalmente depois de o Sol se pôr, achava-se solitária. Ninguém por lá passava. Também, no povoado, ninguém em horas da noite se atrevia a sair fora de sua habitação.
Correra a notícia de que Valério cumpria a terrível sina, e essa nova era pretexto suficiente para plantar em todas as almas o temor, que a superstição inspira aos crentes do sobrenatural.
E às histórias, que se contavam à beira da lareira, histórias de bruxas e duendes, acrescentavam umas narrativas, que todos ouviam encolhidos de medo, a respeito do fado de Valério, que lá andava trotando na estrada, aproximando-se por vezes das casas, onde fazia muito barulho e dava gemidos tão agudos e pungentes que causavam pena.
E esses gemidos, diziam, eram de dor, porque o Diabo, com um forcado em brasa, andava sempre a picá-lo, como quem pica um boi. Lá do barulho, que se ouvia, não havia opinião certa: uns afirmavam que eram coices que Valério dava nas portas para que lhas abrissem, outros diziam que eram correntes que ele arrastava, ou pedras que as bruxas lhe atiravam.
Coitado de quem é lobisomem!
Em noites de luar ou de tempestade, correndo sempre na estrada, transfigurado em besta-fera, a sua vida é uma cadeia de martírios!
Ou por baixo de silvados ou sobre as ortigas e as neves do monte, o lobisomem, cumprindo a sua sina, avança sempre, sem se cansar, mas gotejando sangue de muitas feridas.
Depois, lá muito ao longe, ao sopé do cerro esguio e negro, como um fantasma, pára, e é então que mil fogos o rodeiarn, fazendo-o aparecer aos olhares dos que o espreitam, por entre as frinchas das janelas, como um espectro horroroso e terrível.
E Valério sofria tudo isto!
Treze anos contados depois do dia em que Valério partiu de sua casa, marcharam a passos compassados e sonoros pelos caminhos, que conduziam à serra, o velho cura da aldeia, o seu ajudante com a cruz e a caldeirinha e mais um ancião.
Andavam sempre e não falavam.
Ao escurecer, já quase extenuados de forças, pararam em um lugar, onde a estrada fazia encruzilhada.
Ali ficaram esperando.
A noite estendeu sobre os campos o seu véu de tristeza. De espaço a espaço ouvia-se apenas o piar agoureiro dos mochos.
Momentos antes da meia-noite, um sussuro, como o do tropel de um cavalo, que se aproximava a grande galope, despertou a atenção dos três homens parados na estrada
— Ele aí vem — disse baixinho o ancião.
— Fé em Deus — respondeu o padre.
Enquanto o sacristão se persignava, o velho cura alçava, bem alta, a cruz.
E logo em seguida chegava e ia passando, fazendo grande estrondo, um animal de formas medonhas.
— Dominus vobiscum, spiritu malum! — gritou o padre, atirando um jorro de água-benta.
E aquele animal fantástico sumiu-se repentinamente, deixando em seu lugar uma nuvem de fumo, que foi subindo, subindo até se perder de vista.
E o cura, depois de benzer aquele sítio, voltou e o seu ajudante para casa do ferreiro, que era o ancião que os acompanhava.
— Acabou-se a sina de Valério — diziam todos.
— Há grande festança em casa do ferreiro — acrescentavam.
E havia.
Na velha habitação do forjador da aldeia, dava-se, com pompa não usual, uma dessas festas que fazem sorrir de contentamento, em comum prazer, todos os membros de uma família: músicas de tachos e almofarizes, cantigas do cancioneiro popular, danças, que faziam lembrar as momices dos antigos truões e folgares, e os melhores vinhos que havia na adega.
No meio de tanta alegria, sòmente uma pessoa parecia triste: era Valério. Talvez que o infeliz ainda estivesse sentindo algum dos sofrimentos, que o tinham atormentado durante longos anos.
- Source
- VASCONCELLOS, J. Leite de Contos Populares e Lendas I Coimbra, por ordem da universidade, 1963 , p.461-464
- Informant
- Nuno Rangel (M),