APL 1889 [Loba-Mulher]
Era uma vez um homem ainda novo, que trabalhava numa quinta. Havia dois ou três homens no mesmo sítio, mas nenhuma mulher, a não ser a mulher do lavrador. Ora ela ia em breve ter um filho e precisava de outra mulher, que a ajudasse na lida da casa. Mas, embora o lavrador andasse pela região para contratar uma, nada conseguia.
Um dia mandaram o criado também à procura. Ainda não tinha andado uma légua, quando viu uma rapariga, de aspecto muito estranho, sentada à beira do caminho. O vestido que trazia não era como os daqueles sítios. Estendia as mãos para o sol, como se quisesse aquecê-las. Usava o cabelo curto, o que era um costume nunca visto nas raparigas dessas bandas. Quando ela reparou que o rapaz a estava observando, falou-lhe, contando-lhe que tinha frio e estava cansada, pois que tinha andado toda a noite, e disse que se chamava Joana e que andava à procura duma casa para servir. Ele disse-lhe que a conduziria a uma e voltaram juntos à quinta, e a dona da quinta imediatamente a contratou.
O menino nasceu pouco depois, e toda a gente, com excepção duma velha, disse que ele era forte e saudável. Mas, quando esta velha o viu, disse que ele estava embruxado e que, ou ela estava muito enganada, ou que havia de haver um sinal do Diabo em algum ponto da pele do menino. E assim era, pois que na pele do ombro lá estava um sinal, semelhante a urna pequenina meia-lua, traçado com um alfinete. A velha disse que não havia causa para sustos, a não ser por alturas da Lua Nova, que então o menino devia ser vigiado toda a noite.
Quando dizia isto, a criada estava sentada no chão com o manto castanho sobre a cabeça e, quando a velha deu as boas-noites para se despedir, ela não respondeu.
Os donos da casa estavam muito contentes com a nova criada. Os criados, porém, não gostavam dela. Tinha muito má-língua e era de carácter violento. Um dia, já quando ela e a patroa se tinham tornado muito íntimas, a patroa contou-lhe o que a velha tinha dito sobre o menino. E ela respondeu que soubera isso, mas receava falar em tal, e que as crianças assim se tornavam lobos, a não ser que se fizesse alguma coisa para o evitar.
Disse então à patroa que o sinal do Diabo devia ser coberto com sangue de pomba e que se devia despir o menino e colocá-lo numa manta na encosta, no próprio momento em que a Lua surgisse depois da meia-noite, porque então a Lua suga estes sinais, exactamente como faz às águas do mar na maré-cheia, e isso salvaria o menino.
E assim, quando chegou a tal noite, fizeram-se todos os preparativos e deixaram a criança na encosta, pois que a rapariga dizia que era essencial que nenhuns olhos humanos estivessem ali, enquanto se fazia o desencantamento. O pai estava muito inquieto, pensando que houvesse lobos por ali, embora desde há muitos anos não fosse visto nenhum nas vizinhanças, e carregou a arma com pregos ferrugentos, por falta de melhores munições, e sentou-se em casa à espera.
Pouco depois a criança começou a gritar, e o lavrador e a sua gente saíram de casa precipitadamente e, ah!, lá estava um grande lobo sobre a criança. Quando o lobo viu os homens, escapou-se, mas o lavrador fez fogo sobre ele, antes que alcançasse a floresta, e ele caiu, e o criado, pensando que o acabava, deu-lhe uma forte pancada com um cajado. Atingiu-o na pata anterior direita, mas o animal continuou vivo e conseguiu fugir, gemendo e coxeando, para a floresta.
E então, de repente, reconheceram todos que a Joana não estava ao pé deles. Não estava em casa, quando eles tinham saído, e não estava lá, quando voltaram.
A pobre criança estava morta, dilacerada pelos dentes do lobo, e a manta estava ensopada em sangue.
Começaram a suspeitar que Joana teria alguma relação com isto.
No outro dia de manhã, seguiram as marcas do lobo até à floresta e, onde estas acabaram, aí acharam a Joana coberta de sangue. Ela disse que tinha ido para o bosque, antes de as outras pessoas terem saído de casa, receando que pudesse acontecer algum mal ao menino, que acorrera da floresta, quando ouviu os gritos, que vira o lobo caminhar na sua direcção e depois sentira o tiro e caíra. A gente da quinta considerou esta história cheia de diabólicas falsidades. Contudo, como viam que ela estava a morrer, mandaram chamar um padre, mas ela morreu antes de ele lá chegar. Enterraram-na onde ela se encontrava, e no braço direito do cadáver havia o sinal duma forte pancada, tal como o criado fizera na pata direita do lobo.
- Source
- VASCONCELLOS, J. Leite de Contos Populares e Lendas I Coimbra, por ordem da universidade, 1963 , p.452-454
- Place of collection
- GUARDA, GUARDA