APL 1904 A Maldição
Dizem os velhos transmontanos que um pai nunca deve rogar uma praga a um filho. Se o fizer amaldiçoará o seu próprio sangue e pagará caro por isso. Daí o ditado: “Anda a praga em redor e vai cair no rogador”.
Conta-se a propósito que há muitos anos havia em certa aldeia um homem muito severo que obrigava o filho a trabalhar sem descanso. Nem os dias sagrados o deixava respeitar.
Um dia, ao aproximar-se a festa em honra do santo da devoção do moço, este pediu ao pai que o deixasse ir à romaria. Mas o pai não aceitou, justificando que havia uma leira para regar, uma restolha para lavrar, um monte para queimar...
— Primeiro a obrigação e depois a devoção! — rematou o pai.
No entanto, o filho resolveu, pela primeira vez, contrariá-lo, dizendo-lhe que o trabalho podia fazê-lo depois, mas que a romaria era coisa de um só dia. O pai, perante a atitude do moço, rogou-lhe a seguinte praga:
— Se fores à romaria, que te danes como um lobo no mesmo dia!
Pior coisa não podia ter dito. No dia da festa o moço lá foi, mas já não voltou. Passados alguns dias, começou a falar-se que andava um lobo corpulento nas redondezas da aldeia e que, pela noite, entrava nos currais para comer os cordeiros. Como o aparecimento deste estranho animal coincidiu com o desaparecimento do rapaz, o pai lembrou-se da maldição que lhe havia lançado e, por isso, alguma coisa lhe dizia que esse lobo era o filho transformado em lobisomem.
Entretanto, os habitantes da aldeia, fartos de tanto desassossego causado pelo lobo, resolveram munir-se de cutelos e, noite após noite, foram à procura dele para o matarem. Ao aperceber-se disso, o pai do moço, muito aflito, foi confessar-se ao padre e pedir-lhe ajuda para salvar o filho.
— Ao amaldiçoares o rapaz fizeste o que de pior um pai pode fazer a um filho! — disse-lhe o padre.
— E que posso eu agora fazer para ajudá-lo? — perguntou o pai.
— Toma esta cruz, e, sempre que os homens da aldeia saírem para matar o lobo, vai com eles. Quando o atingirem com os cutelos, tu aproximas-te dele e colocas-lhe esta cruz sobre o sangue.
O homem assim fez. Quando o lobo tombou no chão com os golpes que apanhou, o homem foi sobre ele e colocou-lhe a cruz no momento em que exalava o último suspiro.
Diz o povo que, no mesmo instante, o lobo se transformou no belo rapaz que havia sido, e que ainda teve tempo de perdoar ao pai o mal que lhe fez. Dias depois o homem foi ter com o padre para lhe devolver a cruz.
— Leva-a contigo — disse-lhe o padre, — pois, ainda que te pese demais, terás de carregá-la o resto dos teus dias.
Não foram muitos. Conta o povo que o homem pouco mais durou, e que morreu roído pelos remorsos.
- Source
- PARAFITA, Alexandre Antologia de Contos Populares Vol. 1 Lisbon, Plátano Editora, 2001 , p.196-197
- Year
- 1990
- Place of collection
- VINHAIS, BRAGANÇA
- Informant
- Guilhermino Bernardino Fernandes (M), 70 y.o., VINHAIS (BRAGANÇA),