APL 2733 Lenda de Algoz
A tarde caía num cinzento de chumbo. Era uma agonia lenta de fim de Verão. Lentamente também, o gado descia das pastagens para se abrigar da noite, cujos passos já soavam ao longe na imaginação febril de António Navarro. A sua casa estava à vista. A mulher e os filhos esperavam-no. Dias antes, como lhe era grato chegar até ali, descansar no seu leito fofo, ouvir o tagarelar das crianças, conversar com a bela Joana que escolhera para mãe dos seus filhos! Como isso ainda há pouco tempo lhe era tão grato! Agora, porém, entrar nessa casa construída pelas suas próprias mãos era quase um pesadelo.
Depois de acomodar o gado, António abriu de mansinho a porta da sua casa e entrou. Ligeira, Joana veio ao seu encontro.
— Tão tarde, homem! As crianças já cearam. Não as deixei esperar por ti. Que tens?
Sem a olhar, o homem respondeu secamente:
— Nada!
Ela mordeu os lábios, despeitada.
— Não tens nada e andas curvado como um velho… triste como a noite!...
Ele perguntou:
— Já comeste?
— Não. Esperei por ti. Acabei agora de deitar as crianças, já te disse.
— Pois vamos também para a cama. Preciso dormir!
Joana olhou-o, perplexa:
— Deitar... Sem comer? Mas porquê?
— Não me apetece... Come tu, se quiseres.
Ela exasperou-se.
— Isto não pode continuar assim! Que te aconteceu homem?
António encostou-se a um móvel e não respondeu. Olhava a noite que começava a descer, atabafando um resto de penumbra que permitia ainda distinguir os objectos.
Joana alterou a voz:
— Tenho o direito de saber por que mudaste!
Ela pegou-lhe num braço, espiando o rosto do marido. Ele sacudiu-a.
— Deixa-me! Já te disse que me sinto cansado... nada mais!
Joana abanou a cabeça.
— Ná, isto aqui anda coisa! Nunca te vi cansado, nem durante a conquista destas terras, que te foram doadas pelos teus méritos de guerreiro, nem mesmo quando levaste três dias e três noites a fio a cavar e a semear. Até a Lua nessa época parecia favorecer-te... E sentias-te feliz!
António suspirou. Era dramático, o tom da sua voz.
— Sim… mas isso já lá vai!
Fortalecida por esse desabafo do marido, Joana voltou a fazer mais perguntas.
— Fizeram-te alguma patifaria? Talvez invejem seres senhor de tantas terras...
António conservou-se impassível, olhando a noite agora já completamente senhora da situação. Joana foi acender as luzes. Queria ver a cara do marido. E continuava a falar, na ânsia de descobrir o que tornara diferente o seu homem.
— Vivemos tão isolados! Quem poderia molestar-te? O gado continua bem... As sementeiras, é um prazer vê-las... Temos três filhos que são o nosso orgulho...
— Cala-te! Cala-te, mulher, deixa-me em paz!
E voltando-lhe as costas foi enfiar-se no leito.
Joana imitou-o sem voltar a falar. O coração batia-lhe no peito, como cavalo a galope. A respiração curta e apressada dava-lhe uma espécie de cansaço. Olhou demoradamente o homem por quem a admiração que por ele sentira se transformara em amor. Ele fingia dormir. Bem o pressentia. António estava preocupado e queria isolar-se, fingindo-se adormecido. Joana imitou-o. Também iria fingir que dormia. Mas o seu pensamento galopava com o bater do seu coração. E se António tivesse descoberto outra mulher e quisesse abandoná-la? Mas descobrir outra mulher, onde? Viviam tão isolados! A povoação mais próxima ficava tão longe! É certo que António levava o dia todo fora de casa. Só ao cair da tarde voltava para junto dos seus. Ah, se ela pudesse ler-lhe no pensamento! Conhecer a sua vontade, descobrir porque andava ele agora assim...
Um imperceptível ruído deixou-a num alerta. António erguia-se devagarinho, para não a acordar, nem aos filhos. Joana ficou imóvel, abafando ainda mais a respiração. Também António respirava mal. Joana entreabriu os olhos. O marido debruçava-se agora sobre o filho mais velho. Teve uma espécie de soluço sufocado. Num movimento rápido, colocou sobre os ombros um capote e saiu sem fazer ruído.
Com o coração quase a estalar-lhe no peito, Joana saltou da cama. Cobriu-se num breve instante e preparou-se para seguir o companheiro. O ciúme era punhal venenoso cravado no seu coração. Porém o ar fresco da noite, batendo-lhe no rosto, deu-lhe forças para ir até ao fim do que ela chamava agora o seu calvário.
A noite, estava serena. Uma noite de fim de Verão em pleno Algarve! Joana via a silhueta do marido caminhando apressado. Nem lhe era necessário esconder-se. António não perdia tempo a olhar para trás! Levava uma ideia fixa. Uma ideia que o queimava como fogo. Andaram assim durante talvez hora e meia. De súbito, António parou. Debruçou-se sobre uma cova de terra e areia. Joana escondeu-se atrás de um rochedo. E então um estampido estranho, como um trovão se fez ouvir, prolongando-se num medonho eco. Joana quase denunciou a sua presença com o susto que apanhou, mas uma luz vermelha iluminou o seu homem. Uma luz que vinha dessa cova sobre a qual António se inclinara. E uma mulher muito bela, de longos cabelos negros, surgiu ante os olhos espantados da pobre Joana. Fez um esforço enorme para conter-se. E foi então que ouviu um estranho diálogo.
A outra perguntava a António com altivez:
— Já te decidiste?
Ele tremia.
— Senhora! Pensai noutra oferta que eu vos possa fazer! O que me pedis é muito!
— Muito? Em troca das honras que te darei, contra todo o oiro que te prometi... peço apenas os olhos do teu filho mais velho. Não é pedir muito!
— E para que desejais os olhos do meu filho?
— Para que eu possa sair desta cova maldita! É esse o preço que me pedem!
— Os olhos do meu inocente!
— Isso mesmo! Os teus ou os da tua mulher não me servem!
— Mas, senhora... isso é como pedires-me a alma!
Ouviu-se então uma gargalhada que veio cortar a noite e tornar o ar mais frio.
— Pedir-te a alma? Pensa como mais te agradar! O que te digo é isto: o prazo termina amanhã. Não o esqueças!
E se eu não tiver coragem?
— Alagarei a tua casa, as tuas terras e toda a tua famflia! Será essa maldição a minha vingança por não me ajudares a sair daqui!
— Não! Não!... Tentarei ainda esta madrugada...
Joana que até aí ouvira com assombro e horror tão estranho diálogo, ao ouvir a última frase de António quase se deixou desfalecer! Fez o sinal da cruz e respirou fundo o ar fresco da noite. Depois, como que alucinada, Joana saiu do esconderijo e correu para casa, sem ser vista pelo marido, ofuscado como estava por essa luz vermelha que emanara do chão.
Abrindo num repelão a porta de casa, Joana correu para o leito onde tinha deitado os filhos. Cobriu-os num só abraço e monologou:
— Tenho de os esconder! Tenho de os esconder! Ele não poderá encontrá-los. Nem ele… nem ninguém! Oh, Senhor Jesus dos Aflitos, socorrei-os!
As lágrimas saltavam dos olhos esbugalhados de Joana, como se ainda estivesse em pleno campo vendo uma mulher surgir do fogo e o seu próprio homem prometer-lhe os olhos de seu filho mais velho!
O sangue fervia-lhe nas veias e sentia-se fera no deserto ao notar a cria em perigo.
— Hei-de defendê-los! Hei-de defender os meus filhos!...
E, fazendo-os sair da cama, embrulhou-os num manto e foi escondê-los numa gruta próxima, recomendando ao mais velhinho que não saísse dali sem que ela os viesse buscar.
Quando chegou a casa, era já dia. E António, que acabava também de chegar, perguntou-lhe, intrigado:
— Donde vens?
Ocultando a sua expressão de horror, Joana respondeu-lhe:
— Fui ver os animais. Pareceram-me inquietos... Deve andar por aí coisa má... Benze-te, homem!
Ele abanou a cabeça. Depois entrou em casa. Ela espiava-o.
António deu volta ao aposento e voltou alarmado. A sua voz soava a tragédia:
— Onde estão os nossos filhos?
Joana fingiu-se serena.
— Onde estão?... Não sei. Há pouco estavam aí. Só se saíram enquanto fui ver o gado.
Mais alarme soou na voz de António.
— Tens a certeza de que os viste antes de saíres?
Joana declarou com segurança:
— Juro-te, homem! Estavam aí na cama, ainda há pouco.
António levou as mãos à cabeça.
— Não é possível! Não é possível que ela não esperasse por mim!
— Ela… quem?
António deixou-se cair sobre um banco. E confessou, feito um farrapo humano.
— Oh, mulher!... Sinto medo! Medo, compreendes?
Joana fez-se forte e perguntou, quase serena:
— Medo de quem?
Sem olhar a mulher, António elucidou:
— Medo... que tenha acontecido alguma coisa aos nossos filhos! É preciso encontrá-los!
Joana retorquiu apenas:
— Deus os protegerá!
António abanou a cabeça.
— Não podes compreender o meu desassossego e sofrimento.
Como era triste o olhar de Joana ao perguntar.
— Tens a certeza?
Sem o notar sequer, António continuou:
— Não podes compreender... preciso de encontrar os nossos filhos! Ou os encontro... ou não mais voltarei!
E o homem saiu correndo, agora saudado pela luz doirada do Sol. Sem perder tempo, Joana foi buscar a cruz que presidia no oratório do seu quarto e saiu no encalço do marido.
Se António se tivesse voltado para trás, tê-la-ia visto. Mas ele corria preocupado demais para imaginar que era seguido, e Joana em breve voltou a reconhecer o local fatídico dessa madrugada.
Mal o homem chegou, chamou em altos berros:
— Senhora! Aqui estou de novo! Aparecei! Preciso falar-vos!
Ouviu-se o mesmo estampido que Joana já escutara horas antes e logo em seguida fumo e fogo precediam a mulher de longos cabelos negros.
— Que me queres, se não me trazes o que te pedi?
— Os meus filhos desapareceram!
— Pois tu irás desaparecer também!
— Escutai-me primeiro!
— Para quê? Já sei quanto vales!
— Tende piedade de mim!
— Piedade? Sinto ódio por quem a pede!
António curvou a cabeça, soluçando. Então Joana, saindo por detrás do rochedo e empunhando a cruz, gritou com voz aguda, mas firme:
— Pois vai-te com Satanás! Eis aqui a Cruz do Senhor!
Mal Joana acabara de pronunciar estas palavras, um trovão ainda maior se ouviu. A mulher desapareceu, desfeita em fumo. E da cova donde ela saíra e por onde também se sumira brotou água com abundância, que ficou correndo até formar uma lagoa.
Não querendo acreditar no que via e ouvia, António aproximou-se da mulher. Falava baixo, como se não tivesse voz.
— Joana! Tu aqui?... Como explicas isto?
As lágrimas retidas há tanto tempo corriam agora pelo rosto da corajosa Joana. Balbuciou apenas:
— Deus seja louvado!
António tocou-lhe num braço.
— Como foi que isto aconteceu?
Joana respirou fundo, antes de responder:
— Ela estava a tentar-te! Foi a Santa Cruz que te salvou!
De súbito, a desaparição das crianças voltou a preocupá-lo.
— E os nossos filhos?
Joana confessou, na voz trémula pelo choro contido:
— Fui eu que os escondi! Tive tanto medo! Ontem a noite segui-te... e ouvi tudo!
António baixou os olhos, envergonhado.
— Perdoa-me! Quase enlouqueci!
Ela disfarçou a comoção.
— Voltemos depressa! Vamos buscar os meninos...
— E... se a outra voltar?
— Homem sem fé! A outra não voltará mais. Temos a Cruz do Senhor!
António fixou os olhos no chão, relembrando a terrível tragédia:
— A terra abriu-se para a engolir... E tanta água correu... tanta água!... Formou uma lagoa!
Joana concordou:
— Sim… correu muita água que tudo alagou! Mas voltemos para casa. O sol brilha de novo e já não haverá trevas nem desespero!
Tão estranha e terrível história ficou de pais para filhos, como herança, e era contada e recontada em volta da lareira. De tanto comentarem a água que tudo alagou, começaram a chamar a esse local Alagôs e mais tarde Algoz. Contava-se antigamente que todos os anos, num determinado dia do fim do Verão, a lagoa dava um estoiro e as águas saíam do leito, alagando os campos...
- Source
- MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume I, pp. 373-378
- Place of collection
- Algoz, SILVES, FARO