APL 2730 Lenda das Sete Cidades
Não se sabe quando começou. Nem se sabe quando terminará. Mas sabe-se, sim, que a lenda vem correndo de século em século, alimentada e transmitida pela própria voz do povo micaelense.
E a lenda diz que o nosso arquipélago dos Açores não é mais do que os restos duma ilha maravilhosa e estranha, onde outrora governava um rei poderosíssimo...
Pois esse rei, apesar de possuir tesoiros incontáveis, vivia triste e taciturno, porque a rainha não lhe dava um filho para lhe suceder no trono. Consultara já os melhores físicos da época, prometera riquezas sem conta, mas a esposa continuava estéril. Estéril!
Então o seu desgosto foi crescendo, aumentando, subindo de tal forma, que o rei, de bom que era, tornou-se mau e cruel e injusto para o povo.
Por seu lado, a rainha sofria em silêncio nos aposentos em que se recolhia, fugindo de todos e de tudo. E, como único lenitivo, rezava febril e devotadamente, pedindo ao Céu um milagre. Só um milagre a poderia salvar! Só um milagre poderia salvar o futuro do reino!
Ora, uma noite, conforme nos segreda a tradição, quando o rei saía dos aposentos da rainha, depois de mais uma violenta disputa sem motivo aparente, derivada unicamente do exacerbamento constante dos seus nervos, viu de súbito algo que o espantou e que de espanto o fez parar.
Diante dos seus olhos estupefactos baixava lentamente do céu uma estrela muito brilhante que, aos poucos, se ia transformando em esbelta figura de mulher, de beleza irreal e envolta em luz prateada.
A custo, o rei conseguiu perguntar:
— Mas que é isto? Estarei sonhando?
E logo a aparição lhe respondeu, numa voz que mais parecia música:
— Não sonhas, não!... Vim aqui de propósito para te falar, poderoso rei!
Ele voltou a olhar para o alto, donde a vira descer. Depois fitou-a novamente, embora com dificuldade, pois a sua luz era tanta que feria e cansava a vista.
— Que desejas de mim?
A voz feita de música ganhou autoridade.
— Que continues a governar o teu reino como o fazias antigamente. Com bondade, com razão e com justiça... Por que mudaste tanto?
O rei suspirou mas não respondeu. E a voz insistiu:
— Sim, bem sabes que hoje és um rei tirano. Poucos dos teus vassalos se conservam fiéis, porque estão revoltados. Em vez de compreensão e paz, espalhas o ódio e a guerra. Porquê, rei forte e despótico?
Pausadamente, já mais seguro de si, o monarca afirmou:
— Porque sofro e ninguém tem compaixão de mim!
Como se já esperasse essas palavras, a voz soou enérgica e dominadora:
— Enganas-te! Eu estou aqui... porque Deus teve compaixão da rainha tua esposa!
— Dela?... De uma mulher incapaz de ter um filho?...
O tom com que falava sabia a sarcasmo. A sarcasmo e a desprezo. Mas a voz feita de música continuou, como se não o tivesse escutado:
— Deus teve pena das suas lágrimas, teve misericórdia do desprezo em que tu a mergulhaste com a tua crueldade, com o teu rancor...
Ele resmungou, surdamente, sempre preso à mesma ideia:
— É uma mulher estéril! E uma mulher estéril não deve ser rainha!
A aparição pareceu irritar-se pela primeira vez. A sua voz tornou-se menos harmoniosa.
— Que sabes tu a tal respeito? Que autoridade tens para julgar os outros, se te portas como um homem sem carácter, como um rei sem coração?
Fez-se silêncio na noite bonita, O rei curvou a cabeça. Abatido. Desanimado. Culpado.
A voz da aparição voltou a ser doce e suave. Mais perto dele, revelou o grande segredo:
— Só Deus é verdadeiro Senhor! E Deus promete-te uma filha como o Sol!
Ele ergueu a cabeça, num ápice. Os seus olhos inundaram-se de espanto. Espanto que era também alegria. Espanto cheio de emoção.
— Que dizes?... Uma filha? Eu vou ter uma filha?... Isso é verdade?
Sorrindo, a aparição acentuou:
— Sim, rei sem paciência... Terás uma filha bela, meiga e boa... Tua esposa não será mais uma rainha estéril!
Por momentos, o rei sentiu vontade de fugir dali, correr por todo o reino a gritar a novidade prodigiosa. Todavia, acabou por se conter. E apenas exclamou, numa aleluia de alma que o fazia rir e gritar:
— Vou ter uma filha... Um sucessor para o meu trono... Louvado seja Deus!
A aparição repetiu suavemente:
— Louvado seja Deus!
Mas logo retomou o mesmo tom de autoridade.
— Escuta! Não te precipites, rei insensato e desorientado!... Tu tens sido muito cruel. Tens feito muito mal. Tens tiranizado o teu povo, que tanto te queria e adorava. É preciso pois que sofras também e aprendas a amar a paciência, a fim de mereceres a felicidade que Deus te destina!
Ele agigantou-se, endireitando-se e mostrando-se tal como era, em toda a pujança da sua figura e do seu poder.
— Ordena!... Único senhor de todas estas terras, serei o teu mais fiel vassalo... Mas dá-me o que me prometeste! Dá-me a minha filha!
A aparição espalhou ainda mais claridade à sua volta.
— Sim... A tua filha nascerá dentro em breve... Poderás vê-la... Verás como é linda e ficarás orgulhoso dela, com certeza.
— Será o meu maior tesoiro, acredita!
A luz esmoreceu um pouco e a voz tornou-se menos alegre, quando a aparição voltou a falar.
— Escuta... A tua filha será de facto o teu maior tesoiro, como dizes... Mas terás de separar-te dela... durante trinta anos!...
— Trinta anos?
Foi uma pergunta rouca, enfebrecida, estrangulada pela surpresa.
— Trinta anos, disseste?
E a voz respondeu, pausadamente:
— Trinta anos, sim!... Trinta anos… para que aprendas a saber esperar... É o teu castigo!
Trémulo, de olhar húmido, de semblante triste, o monarca limitou-se então a inquirir:
— E... e onde estará a minha filha… a minha querida filha… durante todo esse tempo?
Rápida, explícita, a aparição esclareceu:
— A princesinha será guardada com o maior carinho dentro dum palácio rodeado por sete cidades que tu vais mandar construir… Sete cidades fortes, cercadas por muralhas de bronze que pessoa alguma poderá transpor, por mais valente que seja.
— Nem eu?
A pergunta ficou bailando no espaço, como se a aparição não a tivesse escutado sequer. Mas o rei, por soberba ou por esperança, voltou a perguntar:
— Nem eu?
Então a voz feita de música respondeu em tom duro, quase desafinada pela impertinência dele:
— Tu... menos ainda que qualquer outro! Ai de ti, se antes de ternimar o prazo marcado tiveres a leviandade de querer ver a tua filha à força... Ai de ti!
Depois, talvez um pouco condoída pela própria admoestação, a voz aconselhou:
— Lembra-te que terás de fazer prova de paciência... para teres direito ao perdão de Deus!
Por instantes, o monarca silenciou. Pensando. Dialogando consigo próprio. Depois não resistiu à tentação de atirar mais uma pergunta:
— Que aconteceria… se eu não soubesse esperar esses trinta anos?
Dura e inclemente, veio logo a resposta:
— Morrerias no dia em que chegasses às muralhas de cobre das sete cidades, que vão defender e isolar de todo o mundo a princesinha tua filha! Pensa bem nisto, rei rebelde e insensato... E pensa ainda no terrível cataclismo que cairia sobre o teu reino, nesse mesmo dia, se ousasses dar tal passo!
Ele respirou forte, a sacudir as preocupações que lhe pesavam. E fez outra pergunta:
— Que acontecerá... se eu tiver paciência e conseguir esperar?
A voz da aparição voltou a ser alegre.
— Terás a tua filha, bela e fascinante como nunca outra viram olhos humanos... e o teu reino será o mais famoso de todos os tempos!
Ele avançou para a aparição e ergueu o braço direito, tal como nos momentos solenes dos juramentos.
— Pois cumprirei à risca tudo o que for necessário… mas dá-me a minha filha!
— Tê-la-ás, descansa! Não esqueças, porém, a tua promessa... porque eu também não esquecerei a minha!
O rei passou as mãos pelo rosto, apalpou-se, mexeu-se, andou para a frente e para trás.
— Meu Deus... será possível?... Será mesmo verdade?... Não estarei a sonhar?
E a voz repetiu, começando já a afastar-se:
— Não estás a sonhar, não... Corre a dar as tuas ordens... Quanto mais depressa terminar a construção das sete cidades, melhor para ti... Adeus, rei poderoso e excitado!
E ele viu a estranha figura de mulher, já transformada de novo em estrela, voar para o espaço e misturar-se com as outras estrelas que salpicavam o manto do céu naquela bonita noite...
Conforme se conta, logo o rei deu ordens terminantes para que se construíssem sete cidades maravilhosas, rodeadas de fortes muralhas de cobre. Não interessava o dinheiro que se gastasse: interessava, sim, que o trabalho fosse rápido e perfeito. Que se chamassem pois os melhores operários de todo o Mundo. Que se usassem os melhores materiais. Que se fizessem sete cidades dignas todas elas da princesinha que ia nascer!
E quando as sete cidades ficaram prontas, a princesinha nasceu, de facto. Linda, tão linda, que o rei, louco de alegria, jurou mais uma vez cumprir rigorosamente, religiosamente, o que prometera à estranha aparição nocturna.
Organizou-se então um grande e sumptuoso cortejo e foram todos em procissão encerrar a jovem e bela princesinha no Palácio que ficava no meio das sete cidades acabadas de construir e rodeadas por altas e fortes muralhas de cobre...
Os anos foram passando. Um a um. Lentamente. Assustadoramente devagar para o rei impulsivo e poderoso que desejava olhar e abraçar e beijar a sua filha querida, a sua herdeira!
De princípio, tudo correu bem. Ele voltou a ser o rei bom e justo, terno e compreensivo, respeitador e respeitado. Sua esposa, a rainha, era agora tratada novamente com requintes de gentileza e de amorosa solicitude. O povo vivia feliz e contente. O reino progredia a olhos vistos...
Porém, os trinta anos não mais acabavam de passar. E, embora tentando dominar-se, o rei começou a andar embruxado pela saudade. E a saudade transformou-se em impaciência. E a impaciência em sofrimento.
Não houve maneira de resistir. Dia após dia, semana após semana, mês após mês, o rei somava raivas incontidas e desesperos de violência. A crueldade veio de novo acompanhá-lo. E o povo tornou a ser vítima. Vítima do despotismo, da impaciência, da inquietação do rei!
Um dia, tudo transbordou. Mandou chamar Bernardo, o homem da sua maior confiança, e perguntou-lhe sem rodeios:
— Bernardo, vem cá! Não achas que tenho sofrido bastante?
O outro baixou a cabeça.
— Também o povo tem sofrido muito, Real Senhor!
Ele fez um gesto de inclemência.
— Que me importa o povo? Trata-se de mim!... Ouviste bem?... Trata-se de mim... Eu não posso esperar mais... Quero a minha filha!
O fiel servidor fitou-o com olhos esgazeados. Suplicou:
— Senhor meu rei! Por amor de Deus, esperai um pouco mais... Faltam apenas dois anos... Dois anos, Senhor!
O monarca deu alguns passos pelo aposento. Passos nervosos. Depois, num ímpeto de fúria, quebrou tudo o que estava ao alcance das suas mãos e dos seus pés.
— Não posso esperar mais, Bernardo. Se continuo assim, enlouqueço! Enlouqueço… se é que já não estou doido por ter esperado todo este tempo!...
Parou no meio da sua fúria. E a tentar semear calma no meio da agitação, perguntou de repente ao fiel súbdito:
— Acreditas... que o facto de a ir buscar antes de tempo... somente dois anos... possa provocar todas aquelas ameaças que me fizeram?
A resposta do seu mais leal vassalo não se fez esperar:
— Acredito, Real Senhor, acredito!
Olharam-se de frente. Num, havia o poder. No outro, a submissão. Mas a verdade é que, naquele momento, se sentiam iguais. Absolutamente iguais no desespero e na dúvida.
— Tu dizes que acredite, Bernardo? E por que hei-de acreditar? Quem me garante que é verdade?
— A presença da vossa própria filha, Real Senhor!
— Presença? Ainda te atreves a falar em presença? Onde está ela? Não vejo a minha filha há já tantos anos... E para quê?
— Bem o sabeis, Real Senhor. Foi imposta essa condição principal... para cultivardes a virtude da paciência!
— E queres mais paciência do que tive durante estes vinte e oito anos?
Houve uma pausa. Depois o rei moderou o tom da voz, a tentar equilibrar o diálogo:
— Estou velho, Bernardo! E sinto-me envelhecer a esperar... Não aguento mais!
O fiel servidor avançou para ele, com as mãos juntas.
— Oh, meu Real Senhor! Afastai os pensamentos maus... Acalmai-vos por amor de Deus!
Mas o tom misericordioso, que parecia servir para atenuar a tempestade, excitou de repente o rei poderoso e indomável. E este gritou:
— Deixa-te de conselhos!... Eu bem sei o que hei-de fazer... Eu sei... Olha, amanhã, de madrugada, prepara os nossos melhores cavalos... porque vamos partir!
Trémulo, hesitante, o outro ainda se atreveu a perguntar:
— Para onde, Real Senhor?
A resposta veio firme, irreplicável:
— Para as Sete Cidades! Vou buscar a minha filha!
Apesar de esperar essa resposta, Bernardo, o homem de confiança, cerrou os olhos, como que atordoado. E foi ainda de olhos fechados que ele disse, como se estivesse a rezar uma prece:
— Senhor! Meu Real Senhor, suplico-vos… tende paciência!... Bem sabeis que o que se atrever a tocar nas fortes muralhas de bronze… antes do prazo indicado… morrerá imediatamente! Pensai nisto, por amor de Deus, Real Senhor!... O vosso reino será destruído!
No meio do furor, houve uma gargalhada selvática:
— Ah, tens medo! Também tu me abandonas?... Pois irei sozinho!
Bernardo rojou-se aos pés de seu amo e senhor.
— Nunca vos abandonei... E o medo que sinto não é por mim… mas por vós e vossa real filha!
O rei segurou-o, fê-lo erguer-se e disse-lhe, num resto de energia:
— Então, não discutas mais e faz o que eu te disse. Amanhã de manhã prepara os nossos melhores cavalos, para partirmos!
Bernardo, sem forças para mais, fez o sinal da Cruz.
— Que Deus tenha piedade de nós!
Segundo conta a velha história lendária propagada pelo povo dos Açores, no dia seguinte, ainda mal despertara a alvorada, o rei e Bernardo, o seu fiel servidor, partiram a caminho do castelo guardado pelas Sete Cidades.
À medida que os dois cavaleiros se aproximavam das muralhas de cobre, as nuvens iam-se tingindo de sangue. E o mar rugia furioso. E a terra tremia em convulsões. Porém o rei, fechando os olhos ao que via, negando os ouvidos às súplicas do seu servo dedicado, continuava a cavalgar, obcecado por uma única ideia: ver a princesa!
Quando chegou junto das muralhas altas e fortes, desembainhou a espada e descarregou sobre elas um terrível, um espantoso golpe, em que pôs toda a sua impaciência de alma e todo o sofrimento do seu coração.
Nesse mesmo momento, houve um ruído imenso, a terra estremeceu e das suas entranhas saíram enormes línguas de fogo... O mar, numa fúria indomável, cresceu sobre a terra e envolveu-a completamente... As nuvens e as ondas misturaram-se, confundiram-se, num cenário de tragédia...
… E ao terminar o terrível cataclismo, desse reino que fora tão grande e tão poderoso, restavam apenas os nove bocados que actualmente constituem o arquipélago português dos Açores!
O palácio onde vivera a linda princesinha transformou-se então na famosa Lagoa das Sete Cidades, que parece, afinal, dividir-se em duas lagoas: uma, de águas verdes; outra, de águas azuis.
E ainda hoje o povo diz que, de um lado, a água ficou verde devido à cor do vestido da princesa; e, do outro lado, a água tornou-se azul, porque azuis eram os sapatos da princesa…
- Source
- MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume I, pp. 345-351
- Place of collection
- Sete Cidades, PONTA DELGADA, ILHA DE SÃO MIGUEL (AÇORES)