APL 2826 Lenda da Lagoa Escura
Quando em 1881 chegou à serra da Estrela a expedição científica incumbida de fazer a sondagem da lagoa Escura para lhe determinar a profundidade, enorme alvoroço se apossou dos pastores da região.
Um vento fresco punha em desordem os cabelos do jovem cientista. Mas estava demasiadamente entregue ao seu trabalho para se preocupar com o penteado. De súbito, um desconhecido, que até ali se conservara em silêncio, gritou-lhe, aflito:
— Senhor! Não deveis pôr isso dentro da lagoa!
O homem voltou-se. Viu o jovem pastor com expressão temerosa. Sorriu-lhe e explicou:
— Isto que vês é um bote de lona.
— E para que o meteis na água?
— Para medir a altura do fundo.
— Mas a lagoa não tem fundo, meu senhor!
O cientista olhou-o com ar de troça.
— Não tem fundo a lagoa? Quem inventou semelhante disparate?
Ingenuamente, o pastor declarou:
— Foi o meu pai quem mo disse. E foi meu avô quem o disse ao meu pai!
E quem contou isso ao teu avô?
— O meu bisavô.
— Claro! Foram os teus avós e bisavós que inventaram tudo isso!
O pastor insistiu:
— Não inventámos nada, meu senhor. Quando há tempestades, aparecem aqui monstros vindos do mar!
O cientista desatou a rir. Encarou o jovem pastor e tentou convencê-lo.
— Olha, homem: tudo isso que me contas são histórias! Tudo histórias! Não existem monstros, nem a lagoa está ligada ao mar!
As feições do pastor tornaram-se mais duras.
— Quereis saber mais que os antigos? Eu já vi bocados de navios engolidos pelos mares a boiarem aqui, nesta lagoa!
O jovem cientista franziu as sobrancelhas.
— Já viste? Tens a certeza?
— Tenho, sim! Vi-os aqui, com estes olhos que Deus me deu! Foi num dia de tempestade...
O cientista meneou a cabeça.
— O que faz a crença! Até vêem o que não existe!
O pastor empertigou-se.
— Juro que vi!
O seu interlocutor olhou-o bem nos olhos; e sentindo que era forte demais a convicção do pastor para a rebater com palavras, resolveu ser mais concreto.
— Ouve? Amanhã virei aqui tomar banho.
O pastor olhou-o como se estivesse na presença de um louco. E gritou quase:
— Morrereis, senhor! O monstro chavelhudo virá agarrar-vos, levando-vos para o fundo do mar! Depois… talvez encontrareis a moura encantada!
O cientista voltou a sorrir.
— A moura? Qual moura?
— A que a fada da Serra levou para o mar, roubando-a aos Lusitanos!
O jovem cientista mostrou-se interessado.
— Conta lá essa história.
— Não sei mais nada, senhor. Só sei que ela queria casar com um cristão. Mas mataram o homem, e a ela levaram-na por esta lagoa dentro.
O cientista achou melhor não contrariar opinião tão segura; retorquiu apenas, fingindo um ar contristado:
— Pobre moura! Nunca mais sairá, então, do fundo do mar?
— Sim, meu senhor. E que Deus nos livre disso!
— Porquê?
— Porque a moura só será desencantada quando um guerreiro da sua raça e da sua fé tenha a coragem de vir libertá-la. E nós não queremos mouros por aqui!
— Nesse caso... a moura ficará para sempre no fundo do mar.
— Assim penso, meu senhor. E agora vou ao meu trabalho. Fique com Deus!
O cientista acenou com a mão ao pastor, e ficou-se a olhá-lo enquanto ele se afastava.
Começava o Sol a descer no horizonte e já os pastores se retiravam com o gado, a caminho dos abrigos. A serra parecia envolvida por luminosidade estranha. Ouvia-se ao longe o tilintar dos chocalhos, quebrando o silêncio.
Coberto com o seu amplo capote, pois começava a esfriar, o jovem cientista ficara pensativo, olhando uma vez mais a sumptuosa e bela lagoa Escura. O que ouvira da boca de um pastor à hora da merenda fazia-o sorrir. Meditava na ingenuidade dessa gente, tão sã de corpo como de alma.
De súbito, uma erva seca estalou no chão. Ergueu o olhar e viu uma bonita rapariga de expressão amedrontada, caminhando a medo para a lagoa. O seu olhar de brilho intenso estava pousado nas águas, a que o cair da tarde dava aspecto ainda mais sombrio. Tão embevecida estava, que nem reparou na presença de mais alguém. Os seus lábios carnudos e sadios murmuraram, de leve, uma espécie de oração bastante estranha. Levantou o olhar ao céu. Só então descobriu que não estava só. A sua expressão mudou. Não conseguiu abafar um grito. E dispunha-se a fugir, quando o cientista a agarrou pela manga da blusa.
— Sossega! Não te faço mal! Não precisas fugir! Vinhas em busca da moura encantada?
Os olhos da rapariga fixaram o jovem desconhecido. Havia medo no seu olhar. Ele voltou a falar-lhe, sorrindo quase com ternura:
— Tens medo de mim?... Porquê? Não te quero mal.
A jovem pastora tremia. E perguntou:
— Acaso sereis… o tal guerreiro mouro?
Sorriu mais o jovem cientista.
— Quem? Aquele que há-de vir desencantar a princesa moura?... Não, não sou... nem creio que ele chegue a vir.
Sempre a medo, ela interrogou de novo:
— Então... quem sois? Vindes de longe?
— Sim, venho de longe. Faço parte da expedição que chegou ontem, e vimos trabalhar aqui, na lagoa Escura!
O medo da rapariga deu lugar à estupefacção.
— Trabalhar aqui? Como? Os monstros não vão deixar!
— É o que tu pensas. Mas eu não acredito em monstros, nem em mouras, nem em lagoas sem fundo. São tudo histórias de lareira.
Afligiu-se, de novo, a jovem pastora:
— Virgem Nossa Senhora! Porque desdenhais os nossos antigos?
— Porque isso é tudo fantasia.
— Tudo quê?
— Ora!... Tudo coisas que se dizem.
A pastora olhou-o por uns instantes, sem responder. Depois dispôs-se a voltar para casa, não fossem os espíritos persegui-la.
— Com vossa licença vou-me andando, que se está a fazer noite...
Ele voltou a segurá-la.
— Espera um pouco e diz-me: que vieste aqui fazer sozinha? Eu sei que vocês procuram sempre outro caminho.
A jovem pastora mostrou-se embaraçada.
— Foi mal pensado, foi. Mas dizem que a rapariga que vier aqui sozinha ao pôr do Sol pedir à moura que lhe encaminhe bem os seus amores é atendida. Por isso eu vim...
O cientista abanou a cabeça.
— Oh, cachopa! Porque razão hão-de fazer preces à moura?
— Porque ela também amou e sofreu por um lusitano cristão. Ela quis ser cristã. Devia ser dos nossos. Era muito boa e muito linda. Mas a fada má encantou-a, levando-a para o fundo do mar, por esta lagoa!
O jovem cientista deixou cair os braços, num desalento.
— E vá lá a gente dizer que isso não é assim!... Olha, pequena: que dirias, se me visses amanhã, à hora da merenda, tomar banho nesta lagoa?
Ela recuou como se tivesse visto um fantasma. A sua voz tremeu.
— Não façais isso, senhor! A menos… que sejais o tal guerreiro mouro...
E olhava-o, de olhos esbugalhados. Ele sorriu.
— Que ideia a tua! Não vês que não sou nenhum fantasma? Olha! Amanhã vamos pôr ali um barco e remexer as águas. Vem, e trás companhia. Hás-de gostar de ver.
— Não! Não quero ver morrer ninguém!
— Não morrerei, garanto-te.
E sorrindo-lhe mais:
— Como és bonita, com esse olhar de pavor! Um olhar que só pode igualar o das mouras encantadas.
Foi o suficiente para a rapariga se libertar das mãos do jovem cientista e correr serra abaixo, dizendo:
— É ele! É o guerreiro mouro! Que Deus me valha!
Parecia uma avezita tonta, a pobre moça! O homem ficou a contemplá-la. E pensava como seria bom possuir o amor de uma mulher tão infantil, tão diferente das outras da cidade!
Lentamente, começou também a descer a serra. O Sol parecia acompanhá-lo nesse ocaso. Mas o pensamento do cientista continuava lá, na lagoa Escura, tentando imaginar qual seria a reacção dos pastores quando, no dia seguinte, a caravana dos cientistas e trabalhadores tomasse de assalto essa lagoa rodeada de silêncio e mistério.
O Sol estava a pino, pondo reflexos dourados em tudo quanto tocava. Na lagoa Escura a azáfama era grande. Lançavam o bote a àgua, perante o pasmo de alguns pastores que os observavam. O jovem cientista olhou em volta. Procurava os seus dois conhecidos da véspera. Acabou por descobri-los. Eram eles o pastor com quem estivera a falar e a jovem pastora que tanto se assustara ao tomá-lo pelo fantasma do guerreiro mouro. Vendo-se descoberta, ela escondeu-se. Mas o jovem cientista chamou o pastor.
— Eh, tu! Anda cá!
O pastor hesitou.
— É a mim que chamais?
— Sim, tu! Aproxima-te!
O serrano aproximou-se.
— Deus o salve, senhor!
O cientista bateu-lhe amigavelmente num ombro:
— Então? Que dizes a isto? Ainda não apareceram monstros chavelhudos, como tu disseste...
— Por enquanto não, meu senhor...
— Pois vou despir o casaco e deitar-me à água, tal como prometi!
— Cuidado, senhor!
Ele riu. Procurou de novo com o olhar a jovem pastora. Ela fitava-o, espavorida, procurando esconder-se.
— Eh, cachopa! Não te escondas, que bem te vejo! Olha, vou ver se encontro a tua moura...
De um salto, o jovem cientista entrou pela água da lagoa. Um grito uníssono saiu da boca da assistência. Alguém comentou:
— Mas ele deitou-se mesmo à água!
Outro opinou, aflito:
— Vai aparecer o monstro! É melhor fugirmos!
A debandada começou. Mas alguns serranos deixaram-se ficar, como colados ao chão. Entre eles, o pastor e a pastora com quem o cientista havia conversado.
O jovem nadava, olhando-os, prazenteiro, triunfante. Bradou-lhes:
— Como vêem, não há monstros na lagoa! Andem daí, rapazes! Venham ver como falo verdade!
Alguns recuaram. Mas o Zé Branco, um pastor jovem com ar desempenado, saiu do grupo.
— Raios me partam, se não vou também!
Uma voz feminina gritou, aflita:
— Zé, não vás! A ele não lhe acontece mal porque é o guerreiro da moura!
O cientista compreendeu que esse jovem pastor era o namorado da pastora com quem falara. E incitou-o:
— Vamos! Mostra que és homem!
Ela gritou, de novo:
— Não vás, Zé, que morres na lagoa!
O jovem pastor encheu-se de brios.
— Não vou, porquê? Sou homem como ele! E mais sabido do que vocês todos! Estive no Porto, quando cachopo, e lá aprendi a nadar. Conheço o mar e os seus abismos!
O cientista animou-o.
— Isso á que á falar! Vem daí, que já estou a arrefecer!
Zé Branco despiu o casacão, tirou as botas e atirou-se a água. Porém, mal entrou nela, fez-se muito pálido. Voltou os olhos para terra. Abriu a boca sem poder falar. E deixava-se ir para o fundo da lagoa, se o cientista não lhe tivesse jogado a mão. Trouxe-o logo para terra, transido de pavor. Os outros homens persignavam-se. A jovem pastora chorava. Acercaram-se dele. Um deles perguntou:
— Que te aconteceu, Zé Branco?
Tentando alinhar as frases, o pastor respondeu:
— Puxaram-me! Senti que me puxaram para o fundo!
Todos fizeram um sinal afirmativo com a cabeça. O que diziam os seus avós estava confirmado! E por mais que o jovem cientista tentasse explicar que o puxão que ele julgava sentir não fora mais que a pressão feita pelo próprio fato por se ter prendido em qualquer planta aquática, eles não acreditavam. Olhavam o homem que viera de longe profanar as águas da lagoa como um verdadeiro fantasma. E a jovem serrana, antes de descer a serra de volta a casa com o Zé Branco, rogou ao cientista:
— Se falais com a moura... dizei-lhe que me faça o que lhe pedi!
Sorriu-lhe o jovem. Não havia outro remédio. A tradição era mais forte que tudo no mundo. Mais forte que a realidade!
Ficou a olhar o grupo que se afastava, deixando-o como fantasma perdido. E ao ficar só — pois os seus companheiros haviam também começado a debandar — o cientista olhou de novo a lagoa Escura. E pensou na moura encantada e no guerreiro lusitano por quem se havia apaixonado.
Como era bela e poética a imaginação do povo! Como era forte a sua crença! Tão forte, que ainda hoje esta lenda subsiste.
- Source
- MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume III, pp. 135-140
- Place of collection
- SEIA, GUARDA