APL 3318 Mattosinhos

Um dos milagres bem manifestos do Senhor de Mattosinhos é a conservação da sua Santa imagem. Tem ella dezoito seculos e nada indica que deslisou por sobre ella o volver de tantos tempos!
    N’este larguissimo periodo, n’esta immensidade de annos, não ha granito, por mais duro que seja, não ha marmore, ferro, aço ou bronze, que sustente a sua primittiva consistencia.
    […]   
    Nicodemos sobreviveu bastantes annos à Paixão do Senhor, e os judeus, por elle ter dado tantas provas de piedade, trataram de o perseguir.
    Aquelle illustre varão fôra mestre em Israel, cargo que não era exercido senão por altos personagens, e dizem alguns auctores, que elle fôra principe na Judéa.
    Os Judeus depozeram-o do seu magisterio, confiscaram-lhe os bens e chegaram a açoital-o, como diz Calmet.
    Em vista de tanta perseguição, fugiu de Jerusalem para um logar solitario, onde seu tio Gamaliel tinha uma herdade. Foi alli que fez a imagem do Senhor de Mattosinhos e as outras mais que se lhe attribuem.
    […]
    Ás violentas vexações dos christãos n’aquella época correspondia a irreverente perseguição das imagens sagradas.
    Foi assim que muitas foram escondidas em subterraneos e outras lançadas ao mar, para as livrarem da fogueira, aonde o odio pharisaico arremessava as que encontrava.
    Nicodemos, tendo então feita a que depois se chamou do Senhor de Mattosinhos, e querendo livral-a d’aquella perseguição, guiado por inspiração divina, desceu ao porto de Job, que fica nas costas da Judéa, banhadas pelo Mediterraneo, e alli a confiou da inconstancia das ondas.
    Novo milagre se operou então, digno da admiração das gentes e que dá a entender o quanto é abençoado por Deus este cantinho do mundo.
    Lançada a sagrada e veneranda imagem ao mar Mediterraneo, sulcou este em toda a sua longitude, desde o nascente ao poente, afastando-se dos cabos, dos promontorios, dos bancos, das ilhas e dos portos; passou o estreito de Gibraltar, entrando no Oceano, e aqui, em vez de seguir a mesma derrota, virou para o norte, sendo levada sobre as aguas até à altura da nossa costa, aportando por fim á venturosa praia de Mattosinhos.
    Dir-se-hia, á vista de tão prodigiosa maravilha, que, como no principio do mundo, o espirito de Deus era levado sobre as aguas.

    A imagem appareceu sem um braço, e n’esta falta quiz o Senhor operar novo milagre.
    […]
    Durante 50 annos foi o Senhor venerado sem o braço, com que appareceu de menos, pois que muitos braços se fizeram, mas nenhum d’elles se ajustava ou prendia ao tronco, tornando-se logo manifesto um novo milagre d’aquella sacrosanta imagem.
    Andava, porém, um dia na praia uma pobre mulhersinha de Mattosinhos, apanhando nos desperdicios do mar, com que alimentasse o lume, e aconteceu encontrar um objecto que lhe pareceu bom para queimar. Chegando a casa deitou-o ao fogo, mas aquillo que lhe parecia um bocado de lenha, saltou fóra da fogueira tantas vezes quantas ella alli o deitou.
    Tinha esta mulhersinha uma filha muda e olhando esta para o que a mãe fazia., com grande assombro de todos fallou e disse:
    – Ó minha mãe não teime em deitar isso ao fogo, olhe que é o braço de Nosso Senhor de Bouças (porque então se venerava ainda a imagem e venerou até ao meiado do seculo XVI no templo que em bouças se lhe erigiu pouco depois do seu apparecimento.)
    Attonita a pobre mulher pelos milagres que presenciava, correu a dar parte d’elles à povoação, a qual foi verificar se aquelle era ou não o braço que faltava ao Senhor, e com assombro viu que tão ajustado lhe ficava que depois não se conhecia já qual d’elles lhe tinha faltado!
    A romaria que a devoção catholica celebra na 2.ª oitava do Espirito Santo, foi instituida para solemnisar aquelle grande milagre.
   
    N’outra mulher permittiu o Senhor que se manifestasse mais uma vez o seu poder, obrando novo prodigio por invocação do Senhor de Mattosinhos.
    Andava ella ao pé do Padrão, e com tanta fé pediu ao Senhor que lhe desse uma agua para curar uma mancha que tinha na cara, que logo, pelo lado debaixo d’aquelle monumento, rebentou uma fonte de salutiferas aguas. A mulher lavou-se, e com grande confusão dos incredulos, se curou immediatamente.
    A fonte lá está ainda, resguardada de granito, com piedosas inscripções de que acima fallamos.

Source
PINHO LEAL, Augusto Soares d'Azevedo Barbosa de Portugal Antigo e Moderno Lisbon, Livraria Editora Tavares Cardoso & Irmão, 2006 [1873] , p.Tomo V, pp. 138-140
Place of collection
Matosinhos, MATOSINHOS, PORTO
Narrative
When
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography