APL 2884 Lenda do Senhor da Verdade
Era baça, imprecisa, a expressão dos seus olhos. Mas ocasiões havia em que o brilho desse olhar do Cristo Crucificado se mostrava tão intenso que mal se podia encarar. Isto o que diz a lenda. Isto o que contam as mulheres dos arredores de Lagos. Ora, como tudo tem um princípio, vamos evocar a lenda do Senhor da Verdade, tal como dizem ter acontecido...
Mariana era buliçosa e muito bela. Alegre e muito jovem. A vida sorria-lhe. Não era rica, mas vivia remediada e conformada. Vira certa vez António, um garboso moço marinheiro, e entregara-lhe, francamente, o coração. E ele correspondia-lhe com igual sinceridade.
Assim, quando António estava em terra procurava logo avistar-se com Mariana.
— Anda cá, cachopa! Não te escondas porque já te vi!
Mariana surgiu, rindo.
— Como me descobriste? Estava por detrás da coluna!
— Não há coluna capaz de esconder uma beleza como a tua! És a moça mais bonita destas redondezas.
— E tu o homem de quem mais gosto!
Ele sorriu contente. E retorquiu logo:
— Mas olha que eu sou um homem do mar! Nem sempre estou em terra! E a mulher que eu escolher terá de ser sempre minha!
Ela encolheu os ombros num ar gaiato.
— Que me importam os outros moços? Só de ti é o meu pensamento!
António aproximou-se, subitamente sério.
— Mas eles andam em volta de ti como o peixe preso à isca!
Voltou Mariana a encolher os ombros, desta vez menos sorridente.
— Deixa-os lá! Se põem a boca muito de fora... correm o risco de morrer como os peixes! Eu não sou para graças, bem o sabes!
António fingiu-se surpreendido:
— Pois tu eras capaz de matar um homem?
Mariana franziu as sobrancelhas e protestou:
— Credo! Eu não queria dizer isso! Mas se algum se atrever a chegar-se mais...
— Que lhe fazes?
Ela mais uma vez encolheu os ombros.
— Ora! Sei lá... O que me der na gana!
António olhou-a pensativo. Havia admiração no seu olhar. Concluiu alto o seu pensamento:
— És uma mulher às direitas! Por isso só tu me serves!
Mariana retorquiu-lhe, rápida:
— E tu és um homem como poucos! Por isso te prefiro a todos!
— Mesmo ao Jacinto?
Mariana encarou o namorado.
— Por que é o Jacinto para aqui chamado?
Ele tentou desculpar-se:
— Esse diabo diz que é o meu melhor amigo, e eu sinto que é um alma danada que anda louco por ti!
Mariana mostrou-se apreensiva.
— Tem cuidado com ele, António! Os seus olhos não me dizem grande coisa quando repara em mim ou em ti!
António ficou por momentos em silêncio, de sobrolho carregado, olhando a vastidão do oceano. E por fim, como falando consigo mesmo, declarou:
— Deve ser esta a última vez que sairei com ele para o mar!
Olhando a rapariga, a sua voz tomou uma expressão confiante.
— Sabes? O senhor D. José vai emprestar-me dinheiro para me governar sem as ajudas do Jacinto! Vou comprar um barquito!
Mariana alegrou-se:
— Que Deus abençoe o senhor D. José!
António agarrou uma das mãos da namorada.
— Estás contente?
— Estou!
— Gostas realmente de mim?
— Pois não vês que só a ti falo? Que só tu me fazes distrair do meu trabalho?
O rapaz apertou nas suas mãos as da rapariga. Sentia-se feliz. Confidenciou:
— Sabes? Fiz um crucifixo de madeira para o nosso barco, e pedi ao nosso capelão para o benzer!
— Porque não o levas já contigo?
— Porque este barco é do Jacinto.
Ela encolheu os ombros:
— E que tem isso? O crucifixo é teu! Quando chegares a terra, ficas com ele... e pronto!
O rapaz meditou um bocado. Depois concordou:
— Talvez tenhas razão. Vou pôr a cruz no barco.
— Quando partes?
— Esta madrugada.
— Que Deus te acompanhe, António! Que Deus te acompanhe!
— Ficas triste?
— Fico. E nem sei porquê...
— Deixa lá! Quando eu voltar hei-de receber-te na ermida de Nossa Senhora da Conceição!
Ela teve um sorriso triste.
— Que Deus te oiça, António, e te traga depressa!
O rapaz beijou-a na testa. Ela mostrou-se confusa. Recuou. Depois, ainda embaraçada, pediu:
— António! Não digas nada ao Jacinto!
—Nada... de quê?
— De que vais casar comigo!
Ele embespinhou-se:
— Ora essa! Porque não? É bom que ele se vá habituando à ideia de que és a minha conversada e de que mais ninguém tem direito ao teu olhar!
Como resposta, António recebeu um lindo sorriso. Depois, com muitos protestos de um amor firme e sincero, despediram-se. Era o fim de uma tarde de Outono. O Sol tomava rubro o horizonte, numa pincelada de mestre. O mar estava calmo. O ar cheirava a maresia.
Partiram os dois homens sob um céu azul, vogando suavemente ao largo da costa rochosa. Na praia, ficou Mariana acenando um adeus. Jacinto, porém, não a via. Voltara costas a terra e fitava a linha do horizonte, onde o mar parece confundir-se com o céu. Mas António só tinha olhos para a silhueta graciosa da sua bem-amada que ficara na praia, entregue ao seu destino. E a silhueta ia-se esfumando, à medida que o barco se afastava.
Quando muito se espera, o desespero surge. Foi o que aconteceu a Mariana. As horas passavam na sua morosa cadência para quem conhece a ansiedade. Os barcos iam chegando à praia, uns após outros. Só o de Jacinto e António não surgia no horizonte. A praia começou a tornar-se pequena para a agitação de Mariana. As falas ruidosas dos outros tornaram-se-lhe insuportáveis. A calmaria do mar, má pressagiadora. Saltitava de rocha em rocha, trepando aos pontos mais altos, na ânsia de abranger mais largo horizonte. Mas o barco que ela esperava não aparecia. De súbito, Mariana teve um sobressalto de júbilo. Lá vinha ele! Lá vinha! Doida de alegria, correu para a praia e esperou, com o coração pulando de ansiedade. Porém, na praia desceu apenas Jacinto. Segundo explicou, António fora arrebatado por uma onda traiçoeira. E com ele desaparecera, também, o Cristo Crucificado.
O desespero de Mariana foi pungente. Olhou Jacinto como quem desejasse reduzi-lo a cinzas. Depois, deu um grito doloroso e foi para casa correndo, desvairada.
Na praia fez-se silêncio. Todos acreditaram na versão de Jacinto. Todos menos Mariana.
No dia seguinte, a rapariga voltou à praia. Não parecia a mesma. Dir-se-ia antes, um fantasma errante, cabelos soltos ao vento, olhando o mar. Dir-se-ia esperar alguém. E esperava. Pedira ao Senhor Crucificado que aparecesse e dissesse a verdade do que havia acontecido! Ela queria justiça! Queria luz para esclarecer o mistério da morte do seu António! Falava sozinha e julgavam-na louca. Mas ela oferecia os seus monólogos a Deus. Pedia! Suplicava com toda a sua alma que o Senhor Jesus Cristo se fizesse à praia para contar a verdade a que forçosamente havia assistido.
De súbito, a voz de Mariana fez-se, de novo, ouvir com alento. Olharam-na surpreendidos. Ela apontava um objecto que uma das ondas tentava arrastar para a praia.
— Venham ver! Venham todos ver! Está ali o Cristo! Vão buscar o meu Cristo!
Um dos homens não hesitou. Foi buscar a imagem de Cristo Crucificado. Mas Mariana continuou gritando:
— Onde está o Jacinto? Quero que ele venha à praia! Tragam-no à praia! Façam-me essa esmola, se foram amigos do António! Este é o Cristo do seu barco! E só Ele sabe a verdade do que se passou! Vão buscar o Jacinto!
Impressionados, alguns marinheiros haviam já ido em busca do Jacinto. E pouco depois chegavam com ele à praia. Ao avistá-lo, Mariana gritou-lhe:
— Aproxima-te! Não tenhas medo!
O rapaz, um tanto embaraçado, aproximou-se e perguntou:
— Que significa isto?
Ela respondeu:
— Basta que olhes e vejas! Este é o Cristo que o António levou para o teu barco! Ele sabe tudo! Sabe tudo quanto se passou!
Jacinto fez-se pálido. Reagiu, porém:
— Esta mulher está doida! Vocês bem o sabem! Para que havemos de estar para aqui a ouvi-la?
Alguns companheiros concordaram com Jacinto. Mas as mulheres discordaram. Levantou-se algazarra. Mariana, contudo, não desanimou:
— Calem-se! Quero só ouvir o barulho do mar e a voz do Jacinto a contar a verdade!
Jacinto retorquiu, furioso:
— Deixa-te de asneiras, mulher! Tenho mais que fazer do que ouvir-te!
Ela agarrou-o por um braço.
— Não te deixo partir sem olhares o Cristo, bem de frente!
Ele tentou desembaraçar-se, visivelmente aturdido:
— Larga-me! Não estou para te aturar!
Mas a palidez do seu rosto fez com que os homens se aliassem a Mariana, que continuava gritando:
— Porque não olhas a Cruz? Tens medo? Anda, diz-me: tens medo?
Ele deu um safanão e tentou voltar costas. Mas desta vez um dos pescadores agarrou-o fortemente, perguntando:
— Será que, realmente, tens medo de olhar a Cruz?
Ele ripostou sem grande convicção:
— Para onde havia de dar esta gente toda, não querem lá ver!... Um homem do mar não tem medo das ondas, nem das tempestades. Porque havia de ter medo de olhar para uma cruz de madeira?
Mariana ripostou:
— Porque a justiça de Deus é mais poderosa que o mar e que todas as tempestades!
Jacinto continuava de rosto voltado. Tremia visivelmente. Mariana pegou na imagem de Cristo Crucificado e colocou-a na frente de Jacinto, que se esforçava por fugir. Mas os homens, postos em círculo fechado, não o deixavam. A rapariga intimou-o:
— Olha esta imagem, de frente, e diz-me o que fizeste do meu António!
Voltando a cara, Jacinto tentou ganhar resistência:
— Como se atreve esta gente toda a ouvir-te neste silêncio, se sabem que estás louca?
Mariana retorquiu:
— O seu silêncio é para não perderem nenhuma das tuas palavras! Vamos, confessa! Que fizeste do meu pobre António?
Resoluto, Jacinto respondeu:
— Caiu ao mar! Não tenho nada a ver com isso! O mesmo pode acontecer a qualquer dos que estão aqui!
Mariana gritou:
— Mentes! Olha este Cristo e repete o que disseste!
As mulheres gritaram:
— Jacinto! Porque não olhas o Cristo? Só assim poderíamos acreditar em ti!
Jacinto teve um sorriso amarelo e tentou gracejar:
— Se é lá por isso...
Olhou a imagem de Cristo sem desviar o rosto. Estava pálido, mas cheio de energia. Mariana gritou-lhe:
— Repete agora a mentira que disseste.
Ele retorquiu:
— Ja disse que…
Baixou subitamente a cabeça num grito e levou as mãos aos olhos. Depois exclamou:
— Tirem-me isso daqui! Essa luz cega-me! Não posso! Tirem-me daqui esse crucifixo!
Um murmúrio elevou-se. Jacinto queria fugir. O cerco tornou-se de ferro. Mariana gritou-lhe:
— Confessa a verdade, Jacinto! Eu não estou louca! Apenas a dor pode matar-me! Mas não estou louca! E se assim sofro, foste tu que despedaçaste a minha vida! Confessa, Jacinto! Confessa!
Jacinto não respondeu logo. A pouco e pouco foi retirando as mãos dos olhos. Um dos homens falou-lhe:
— Porque ficas de costas para a imagem?
Ele suspirou fundo, visivelmente abatido.
— Não sei o que se passa… Mas sei que não posso olhar de frente esta imagem!
— Porquê? — gritaram os homens, quase em coro.
— Porque a luz que sai dos seus olhos cega-me!
Um dos marítimos mais velhos falou então:
— Jacinto! O que acabas de dizer condena-te! É melhor confessares a verdade. Que fizeste do António?
Houve um silêncio. Mariana quase não respirava. Então, Jacinto teve uma crise de choro. Homens e mulheres entreolhavam-se, sem saber o que dizer. Já não lhes restavam dúvidas. Mariana, porém, insistiu:
— Confessa, Jacinto! Confessa!
Caindo de joelhos sobre a praia, o homem implorou de mãos elevadas ao céu:
— Perdão, Senhor! Perdão! Eu apanhei o António distraído e atirei-o ao mar! Vi-o a balouçar sobre as ondas. E quando ele tentava alcançar de novo o barco… apunhalei-o!
Um grito rompeu aquela confissão e sobrepôs-se ao ruído do mar. Era de Mariana.
— Maldito! Bem sabia que tinhas sido tu! Roubaste a vida ao homem mais digno que se fazia ao mar e aquele a quem tinha dado todo o meu amor!
Soluçando, Jacinto continuava de joelhos na areia. Tentou agarrar uma das mãos da rapariga, que se furtou como se fugisse do raio. Ele pedia:
— Perdoa-me, Mariana! Eu amei-te e amo-te ainda como ninguém!
Mariana levou as mãos aos ouvidos como a impedir escutar semelhante declaração de amor.
— Cala-te, homem! Como podes falar de amor, tu, que destruíste o mais são e o mais doce amor que eu havia conhecido!
Sempre chorando, Jacinto ergueu-se, e olhando o velho lobo do mar que antes o havia interpelado, declarou:
— Matei um companheiro! Estou pronto a sofrer a justiça de Deus e dos homens!
Algumas semanas passaram. Jacinto fora levado a julgamento. Mas a pobre Mariana, inconsolável, não mais comeu nem dormiu. E, após uma semana de choro convulsivo, acabou por morrer numa tarde de sol, sobre a areia finíssima de uma das praias de Lagos! Veio o mar beijar-lhe a fímbria da saia rodada, cantando, ao longe, uma canção de saudade. E a imagem milagrosa de Jesus Crucificado foi levada pelo povo para a ermidinha da Senhora da Conceição, onde o António pensara receber Mariana. Chamaram, então, à imagem — o Senhor da Verdade. E o povo passou a correr ao seu pequeno altar sempre que necessita das Suas Graças.
- Source
- MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume IV, pp. 237-243
- Place of collection
- Lagos (São Sebastião), LAGOS, FARO