APL 2859 Lenda da Senhora da Popa

Pelos meados do século XVIII, vivia em Alcochete uma jovem muito piedosa chamada Conceição. Todos os pobres das redondezas a conheciam e a estimavam. Ela era a sua benfeitora. A que se interessava pelos seus problemas. A que tentava minorar-lhes os sofrimentos e suprir-lhes as faltas.
Apesar de jovem e rica, Conceição não quisera casar. Estimava profundamente seu pai, capitão da marinha mercante, e desde que ele enviuvara a sua dedicação por ele redobrara de intensidade. Porém, o velho marinheiro não compreendia, ou antes, não achava bem aceitar o que ele pensava ser um sacrifício. E certo dia falou a Conceição.
 
Era a hora do crepúsculo. O velho marinheiro achou propício o momento.
— Filha, repara neste fim de dia!
Ela sorriu.
— É maravilhoso! O Sol está fazendo a sua despedida. Dentro em pouco virá a noite.
— É isso mesmo: o Sol desaparecerá. E a noite é a morte!
— Não falemos em morte! A noite é apenas a ausência da luz.
O marinheiro suspirou. Olhava o horizonte, meio confundido com a sombra.
— Filha! Também eu estou caminhando para o ocaso. A morte espreita-me. E não desejaria que ela te deixasse sozinha.
Conceição entristeceu.
— Meu pai, por favor, não fale assim! Sabe quanto o estimo!
— Sei. E sei também que por minha causa não te queres casar.
Ela protestou:
— Não é por sua causa! Sinto-me bem assim.
— Mas eu tenho de olhar pelo teu futuro. Seria horrível, ficares só no mundo até fazeres a derradeira viagem!
Ela tentou gracejar.
— Que ideia a sua! Fez-lhe mal este fim de tarde!
— Dizes bem. Fez-me mal, porque também é um fim… e lembra-me o meu...
— Pai! Temos ainda muito tempo à nossa frente!
— Bem sabes que não.
— Ora!... Além disso... não vejo pretendentes que me interessem.
O marinheiro encarou a filha.
— Conceição, não digas tal!... Então o Rebelo… o Vasco... o Lopes da Maia... o Gastão...
A jovem interrompeu o pai:
— Por amor de Deus, não me fale no Gastão! Cada vez está mais herege! Chega a entristecer-me.
O velho marinheiro olhou um ponto vago. E sentenciou:
— Gastão é o meu melhor ajudante. Sem ele já não poderia fazer nada do que faço.
— Mas porque troça ele da Misericórdia de Deus?
— Julga-se superior por isso...
— E a imagem de Nossa Senhora que pedi para colocar no seu navio?
— Bem... Ele não concordou... Mas como quem manda sou eu, já está colocada na popa do barco. 
Conceição abraçou o pai num gesto quase gaiato.
— Quanto me alegra essa notícia! Agora já ficarei mais tranquila quando o pai sair para o mar. Nossa Senhora há-de protegê-lo sempre!
— Deus te oiça!
E rindo:
— Se visses a cara do Gastão! Ficou furioso. Mas quem manda sou eu. Ele é o meu imediato, teve de obedecer-me!
Conceição abanou a cabeça.
— Faço ideia! Fartou-se de blasfemar!
Suspirou fundo e concluiu:
— Que Deus lhe perdoe e o esclareça!

Algum tempo passou. Veio o dia do comandante se fazer de novo ao mar. A atmosfera estava carregada, ameaçadora. Dizia-se que o navio não se libertaria do temporal anunciado pelas previsões dos mais antigos.
Conceição despediu-se do pai escondendo a sua preocupação. Foi com ele até ao cais. Avistou Gastão, que veio falar-lhe.
— É preciso partir para ter a dita de ver o rosto mais belo que até hoje me foi dado contemplar.
Ela sorriu, retorquindo:
— Leva consigo outro rosto ainda mais belo!
Curioso, ele perguntou:
— Qual poderá ser?
— O de Nossa Senhora, que meu pai mandou colocar à popa do navio.
Gastão deixou de sorrir. Franziu as sobrancelhas. E exclamou:
— Que pena a Conceição ser tão beata!
— Porque o lamenta?
— Porque, se o não fosse, faria de si a minha esposa.
Conceição atalhou, muito séria:
— Não penso casar-me. Por isso não lamente o que me dá tanta felicidade.
Gastão tentou gracejar:
— Não é felicidade, o que leio nos seus olhos: é preocupação.
Ela concordou:
— Na verdade, o estado do tempo preocupa-me.
— Por causa de seu pai?
— Por todos. Mas principalmente por ele.
— Deixe-o comigo! Prometo fazer tudo para que nada lhe aconteça.
Ela estendeu-lhe a mão.
— Confio em si. Vou ficar em casa presa às notícias que me chegarem.
O vento começava a levantar-se. Ao largo, uma barra de cor cinzento-escura pressagiava tempestade. Conceição beijou o pai, recomendou-lhe cuidado, e voltou para casa.

No mar alto, as vagas cresciam como montanhas. O vento sacudia o navio. Quase toda a tripulação e os passageiros tinham recolhido. Os mais conscientes começaram a aperceber-se do perigo. O navio, já cansado de tanto sulcar os mares, parecia agonizante, enfraquecido ante a gigantesca procela. As ondas varriam o convés. Os poucos tripulantes que se conservavam na luta contra os elementos caíam, por vezes, desequilibrados pelo vento e pelo balanço do navio. Sentindo a gravidade do momento, o comandante arrastou-se até à popa para orar à imagem da Virgem. Vendo-o, Gastão enfureceu-se.
— Comandante, não é com palavras que nos salvamos! É preciso fazer alguma coisa!
Elevando a voz sobre a tormenta, o velho comandante replicou:
— Pois salvem-se! Eu morrerei no meu posto!
Gastão proferiu uma praga, exclamando:
— Não vê que não o deixarei morrer? Hei-de salvá-lo, custe o que custar!
Olhou a imagem colocada na popa e declarou:
— O peso dessa santa está a desequilibrar o navio. Vou deitá-la ao mar!
O comandante gritou:
— Proibo-te que o faças!
Gastão parecia o demónio gritando no temporal, o rosto encharcado pelos salpicos das vagas:
— Eh, rapazes, agora quem manda sou eu! Agarrem o velho! Não o deixem mexer-se! E tu, Inácio, encarrega-te de deitar a santa ao mar! Talvez com menos peso à ré, o barco endireite a proa.
O rapaz interpelado olhou o comandante, que esbracejava agarrado por outro marinheiro. Hesitou. Mas o imediato gritou-lhe colérico:
— Vamos! Porque esperas? É uma ordem!
Inácio avançou para a imagem de Nossa Senhora. Gritando, já rouco, o velho comandante sentenciou:
— O castigo do Céu cairá sobre todos vós, desgraçados!
Gastão vociferou:
— Velho beato! Pois não vês que é para teu e nosso bem?
E voltando-se para o marinheiro:
— Então? Quando acabas com isso?
— Vai já, pronto! Vou dar aos peixes a santinha! Que lhes faça bom proveito!
Nesse momento exacto, algo se passou de pavoroso. Ao atirar a imagem pela borda fora, Inácio desequilibrou-se, envolvido por uma vaga maior, e desapareceu no redemoinho das ondas com o seu precioso fardo. Mas logo outra onda ainda maior varreu o convés, fazendo inclinar o barco tão violentamente, que este em breve metia água. A tripulação que estava no convés sumira-se nas vagas. Dir-se-ia o fim do mundo, no choque tremendo dos elementos em fúria.
 
A essa mesma hora, em casa e defronte de uma imagem da Senhora da Conceição, a jovem filha do comandante, que pressentira o tremendo temporal, implorava, chorando:
— Senhora da Conceição, minha madrinha e protectora! Salvai o meu pai! Por tudo Vos peço! Se necessário for, ofereço-Vos a minha vida em troca da vida de meu pai e da salvação do Gastão, para que ele se arrependa, e creia em Vós e em Deus! Ele é bom! Apenas não foi criado no ensinamento de Deus! Salvai-os, Senhora, mesmo em troca da minha vida!

No mar continuava a tragédia. De súbito, porém, pela Vontade Divina, surgiu à superfície das ondas, agora menos revoltas, a imagem de Nossa Senhora da Conceição. E essa imagem arrastava consigo dois corpos desfalecidos: o do velho comandante e o do seu imediato. Vogava ao sabor das ondas, de segundo a segundo mais calmas. E a tempestade amainou. E a imagem de Nossa Senhora, arrastando os dois corpos desfalecidos, foi dar às Matas, entre Samora Correia e Alcochete.
Quando o povo teve conhecimento de tamanho prodígio, logo ali acorreu. Já reanimados, o comandante e o imediato do navio naufragado olhavam em volta, perplexos. Por fim, o velho homem do mar exclamou:
— Só nós dois nos salvámos! E foi graças a Nossa Senhora! Operou-se um milagre! Gastão, acreditas agora?
Perturbado, mal crendo na realidade, Gastão apontou a imagem:
— Olhe, meu comandante! Olhe bem para o rosto da santa!... Tem as feições da jovem Conceição!
O comandante olhou a imagem da Virgem Santíssima. Os seus olhos abriram-se num espanto. Era verdade. As feições de sua filha estavam marcadas no rosto da Mãe de Deus!
A nova correu célere. Procuraram a jovem em casa. Mas encontraram-na morta, sorrindo como quem parte, contente, para uma grande viagem! De facto, Conceição partira, porque oferecera a sua vida em troca da salvação do pai e daquele por quem o seu coração batia em segredo.
Os populares transmitiam de boca em boca o que acabara de acontecer. Levaram em procissão a imagem da Virgem, a quem já chamavam Nossa Senhora da Conceição da Popa, para a igreja matriz de S. João Baptista, em Alcochete.
No meio dessa multidão de fiéis que se juntavam de todos os pontos das imediações, caminhava um homem absorto, como sonâmbulo. Era Gastão, convertido, amargurado, desejando apenas penitenciar-se. Quem o via julgá-lo-ia orando. Mas quem mais se aproximasse ouvi-lo-ia exclamar.
— O rosto de Nossa Senhora é o rosto da Conceição! O rosto da Conceição! Acredito! Acredito no milagre! O rosto de Nossa Senhora é o rosto da Conceição!...

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume IV, pp. 35-39
Place of collection
Alcochete, ALCOCHETE, SETÚBAL
Narrative
When
18 Century, 50s
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography