APL 2896 Lenda da Ermida de Vila Chã

Em certas povoações perto de Fornos de Algodres conta-se uma pitoresca lenda sobre a origem da igreja de Vila Chã.
 
Num pequeno povoado não longe da serra existia em tempos que já lá vão um santuário dedicado à Santíssima Virgem. O edifício, porém, era de tamanho bastante reduzido e, à medida que a devoção à Virgem ia crescendo, as dificuldades de albergar todos os fiéis na reduzida capela eram maiores. Por outro lado, os devotos achavam pobre em demasia uma casa que era dedicada ao culto da Mãe de Deus. Então, os que vinham de Fornos de Algodres reuniram-se com os de Vila Chã e propuseram:
— Estamos dispostos a assumir o encargo da maior parte das despesas do novo santuário dedicado à Virgem Maria. Mas pomos uma condição.
Fez-se um pequeno silêncio. Um dos mais representativos de Vila Chã perguntou:
— Diz-nos qual é a condição.
O outro apressou-se a informar:
— O santuário será feito em Fornos de Algodres. Assim como nós vimos aqui... também vocês lá podem ir...
E acrescentou:
— E assim veremos quem tem mais fé e perseverança!
Os de Vila Chã entreolharam-se. Qualquer coisa dentro deles dizia-lhes que não deviam aceitar. Mas a lógica era a lógica... Se os outros arcavam com a maior parte das despesas, tinham razão para escolher. Aceitaram. Mas aceitaram com a mágoa no coração. A Senhora estivera sempre ali, mesmo a seu lado, embora numa casa pobre, como a deles. No entanto, por egoísmo não deviam privar a Mãe de Deus duma casa condigna. Começaram a amontoar pedras e vigas e quanto material puderam juntar. E quando certa manhã os operários se reuniram no local aprazado para levarem para Fornos todo o material existente, houve grande alvoroço, antecipado por momentos de verdadeira estupefacção: todo esse material havia desaparecido!
O que parecia tomar conta da obra falou aos outros:
— Não quero culpar ninguém, mas o que é certo é que eu próprio vi com os meus olhos todo o material que foi junto e era bastante. Estava neste mesmo sítio. Agora tudo isto está vazio. Como poderemos explicar o acontecido?
Um de Vila Chã respondeu:
— Ninguém o poderá explicar, porque o culpado — se o há — não vai confessar-se! Vamos, antes, ter com a autoridade e contemos-lhe tudo.
Os outros concordaram. A autoridade, depois de os ouvir, propôs:
— Vamos à capela ter com a Virgem Santíssima. Na sua frente o culpado se arrependerá e pela noite levará para o local indicado o material que subtraiu. E prometemos esquecer o que se passou.
Foram todos a caminho da capela. Porém, ao chegarem ao santuário velho, a surpresa de quantos ali estavam reunidos foi indescritível: rodeando a entrada estava todo o material para o novo santuário! Sem encontrar explicação para o sucedido, a autoridade lembrou que o melhor seria todos, com a mesma vontade e irmanados pelo mesmo amor à Virgem, levarem de novo o material, pedra por pedra, viga por viga, para o local designado anteriormente. Foi prontamente obedecido. Mas a noite chegou no momento preciso em que a remoção das coisas findava. Marcou-se, portanto, o trabalho para a manhã seguinte. E cada qual recolheu a sua casa.
 
A manhã nasceu clara, quase quente. Uma manhã de avançada Primavera. Levantaram-se os homens mais cedo, pois tinham prometido duas horas de trabalho para o santuário novo. Mas quando chegaram ao local onde na véspera haviam deixado o material de construção olharam-se boquiabertos: o local estava novamente vazio. Correram à igreja e, como por encanto, como se o vento pudesse levá-lo, ali estava ele: pedras, vigas, sacos de areia e cal! Havia um mistério em tudo isso. Um mistério que se tornava forçoso decifrar. A autoridade escolheu, então, seis homens de Fornos de Algodres e seis de Vila Chã para ficarem de guarda ao material, durante a noite. Assim fizeram. Mal a noite chegou reuniram-se no sítio para onde, durante o dia, haviam levado uma vez mais o material para a construção do novo santuário. Puseram-se dois a dois, um de Vila Chã com outro de Fornos de Algodres, rodeando o local em questão. Esperaram. A noite parecia calma. Cantavam os ralos. Havia luar. Pouco depois da meia-noite sobressaltaram-se. Na estrada ouvia-se como o chiar de um carro. Espreitaram. O luar iluminava tudo em volta. Ergueram-se. Um carro puxado por dois bois surgiu direito ao local onde estavam as pedras e as vigas, guiado por uma mulher nova e muito bonita.
Mal chegaram, a mulher exclamou:
— Que todo o material aqui reunido para a nova capela passe para o carro. Assim o levarei para junto da minha casa, que não desejo ver mudada.
E sem que os homens se apercebessem como, todo o material em poucos segundos ficou depositado no carro, e este voltou pelo caminho donde surgira.
Por momentos, os de Vila Chã e os de Fornos ficaram sem palavras. Se fosse apenas um o espectador, diriam que ele tinha sonhado. Mas eram doze! E os doze viram e ouviram tão estranho acontecimento! Agora não lhes restavam dúvidas: quem levava todas as noites o material de construção era a própria Virgem Maria, que por motivos muito Seus não queria sair do santuário onde havia muitos anos atrás outros cristãos, crentes e bons, a haviam colocado para A venerar.
Quando, nessa mesma noite, foram acordar a autoridade e lhe contaram o sucedido, o homem concordou:
— É isso! É isso mesmo! Como não compreendemos logo os desígnios da Mãe de Deus? A Virgem Santíssima não quer sair da sua primitiva casa. Pois aumentemos a que de há tantos anos. A guarda, alindemo-la o melhor possível e adornemo-la, dando graças a Nossa Senhora pelo desejo que manifestou de ficar entre nós!

Segundo conta a lenda, assim se construiu o santuário no mesmo local da primeira ermida dedicada à Virgem Santíssima em Vila Chã, freguesia de Fomos de Algodres.

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume IV, pp. 341-343
Place of collection
Vila Chã, FORNOS DE ALGODRES, GUARDA
Narrative
When
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography