APL 2849 Lenda das Águas de Almofala
Aconteceu assim mesmo. Inesperadamente. Pitorescamente. Foi numas termas afamadas e a propósito de águas milagrosas que alguém se açercou de mim, para me perguntar se conhecia a lenda das Águas de Almofala. Eu ouvira de facto falar nela muito por alto e tinha já em meu poder alguns poucos elementos a seu respeito — mas desejava saber mais...
Então, o meu companheiro dessa tarde declarou ser de Castelo Rodrigo e, portanto, conhecer muito bem toda a região de Almofala. Agradeci a amabilidade e dispus-me a escutá-lo.
Em tempos que se perdem nas curvas do próprio tempo, Almofala era terra de gente moura, tal como o seu nome indica, pois significa, no árabe, «hoste ou arraial de mouros».
Em Almofala vivia então uma jovem de peregrina beleza chamada Salúquia. Todos a admiravam. Todos lhe prestavam vassalagem. A sua vontade era a que imperava, tal a fascinação dos seus olhos, do seu corpo, da sua voz.
Um dia, porém, um novo governador árabe veio tomar conta dos destinos de Almofala.
A nova correu célere. A curiosidade de conhecer o novo governador subiu ao máximo. Como seria ele? Novo? Velho? Bondoso? Tirano?
Os cristãos haviam começado as suas investidas. Era necessário organizar-se a defesa da povoação. O novo governador trazia consigo um numeroso grupo de cavaleiros árabes. Era novo, forte e de imponente aspecto. Todavia, o sorriso não parecia ser apanágio da sua expressão. Altivo, mandou reunir toda a população da terra e falou-lhes:
— Quer Alá que seja eu quem governe nesta terra os vossos destinos. Aqui estou, pois. Mas exijo uma condição: inteira obediência. Os cristãos invadem o nosso território. Temos de defendê-lo, custe o que custar! Para que tenhamos força, precisaremos de união. E para haver união é necessário que todos sigam os meus conselhos. Previno-os! Não perdoo desobediências nem desrespeitos! Ficamos entendidos?
Fez-se um pequeno silêncio. Todos, calando-se, mostravam estar de acordo. Todos, menos alguém. Da multidão saiu, de súbito, a bela Salúquia. Avançou até ficar frente a frente com o governador. Olharam-se por momentos em silêncio. Depois ela falou:
— Diz-me, senhor: eu também tenho de obedecer às tuas ordens?
O governador tomou uma expressão de espanto.
— E porque não? Quem és tu para pretenderes ser mais do que os outros?
Ela sorriu.
— Sou Salúquia!
— E quem é Salúquia?
— Aquela a quem todos aqui obedecem!
— E porquê?
— Porquê? Ora... pergunta-lhes. A qualquer... ao acaso.
O governador franziu as sobrancelhas e perguntou a um jovem mouro que estava na frente:
— Diz tu. Porque obedecem todos a esta mulher?
O jovem ficou um tanto atrapalhado. Mas confessou:
— Porque Salúquia é bela, muito bela! E todos desejamos as suas boas graças. Além disso... o seu olhar parece ter um poder estranho...
O governador atalhou:
— Poder que não servirá para mim!
E voltando-se de novo para a jovem moura:
Salúquia, o teu reinado acabou! Agora o senhor sou eu! Eles podem dizer de ti o que quiserem. Mas eu devo prevenir-te: se não cumprires as minhas ordens, serás terrivelmente castigada!
Salúquia cerrou os lábios. O peito arfava-lhe. Aquele era o primeiro homem que não conseguia subjugar. O primeiro para quem a sua beleza parecia não ter sentido. Corou de raiva. E exclamou:
— Se me castigares, amaldiçoar-te-ei para sempre!
Os olhos negros do governador pareceram relampejar. Tal insubordinação à vista de todo o povo de Almofala não poderia ficar impune. Se o fizesse, não deveria contar mais com a sua autoridade. A expressão endureceu-se. A voz soou enérgica:
— Salúquia! Se não sabes obedecer-me, eu te ensinarei!
A moura mostrou-se invulgarmente audaciosa, bem diferente das mulheres da sua raça.
— Não creio que sejas um bom mestre!
Rápido, ele replicou:
— Tu própria poderás avaliar, e já!
E voltando-se para os cavaleiros que haviam desmontado, ordenou:
— Agarrem-na!
Salúquia gritou:
— Que nem um só me toque!... Se alguém o fizer, eu o amaldiçoarei!...
— Pois será um dos teus que irá cumprir o castigo que te vou aplicar. Avança tu, que estás mais perto.
Ela voltou a gritar:
— Que nem um só se mexa!
Houve uma espécie de ondulação humana entre a multidão, mas ninguém se destacou do grupo. Então o governador avançou e disse:
— Têm medo das maldições? Pois eu próprio a segurarei.
E agarrou-a fortemente pelos pulsos. Ela tentou detê-lo, gritando:
— Larga-me! Larga-me!
Com violência, o governador imobilizou-a e sentenciou, olhando-a bem nos olhos:
— Comigo ninguém brinca… muito menos uma mulher!
E voltando-se para um dos guerreiros que havia trazido na sua comitiva:
— Dá-lhe seis vergastadas... Começa! Ela está bem segura!
O homem começou a cumprir a ordem recebida. Com grande pasmo e até íntima revolta da população de Almofala, Salúquia estava a ser castigada. Mas o medo fê-los calar. Ela gemia, dentes cerrados. A sexta vergastada soou. O castigo findara. Pálida e de grandes olheiras a circundar-lhe os olhos maravilhosamente belos, Salúquia olhou o governador sem nada dizer. Um silêncio impressionante amarfanhava toda aquela gente. Foi ainda o governador quem falou. Mais brando. Com um sorriso quase irónico.
— Bela Salúquia! Tu e todos quantos aqui estão presentes não guardam dúvidas agora acerca do que sou capaz para impor a minha vontade! Podem, pois, retirar-se. Espero que tenham aprendido a lição. E acreditem: este foi apenas um pequeno castigo, para servir de exemplo. De futuro serei mais severo!
A multidão começou a debandar, de cabeça baixa, sem se atrever a comentários.
Salúquia deixou-se ficar. O governador fingiu não dar por ela e afastou-se também. Todavia, no seu rosto, à expressão de dureza seguiu-se a de uma terrível ansiedade...
As invasões cristãs tornaram-se realidade bem patente. Não mais existiria descanso. E cada vez mais exigente, mais cruel, o governador não deixava em paz esse povo que vivera como poeta em seu reino.
Salúquia andava arredada. Não voltara a ser a rapariga atrevida e alegre que a tornava diferente das suas irmãs de raça. No seu peito ardia um fogo que a consumia. As noites longas eram para ela um inferno. Debatia-se entre o desejo de aniquilar o governador e o de esquecer a sua existência. Mas o rosto altivo, enérgico e belo do mouro aparecia-lhe até em sonhos, ordenando que a vergastassem.
Foi assim que certa madrugada em que o vento zunia impiedosamente, cortando rente os ramos mais tenros dos arbustos, Salúquia, olhos pisados pela insónia, abriu uma janela e deixou que a tempestade lhe desfizesse o penteado. Sofria. Sofria terrivelmente, nem sabia bem de quê. Mas o causador de tudo isso era o governador. Então, elevando a sua voz acima da voz do vento, ela clamou:
— Oh, homem cruel que me não desejas, eu te amaldiçoo! Não terás mais um dia de descanso, nem mais um dia de saúde, nem mais um dia de felicidade! Leva a minha maldição, ó vento!
E o vento, parecendo tê-la escutado, partiu mais veloz ainda, mais indómito, levando nas suas asas a maldição da linda Salúquia.
Quando o dia rompeu, veio encontrar o governador de Almofala torcer-se com dores violentas. Um amigo indagou:
— Que tens? Sentes-te mal? Terias bebido algum veneno?
Ele mordeu os lábios. Respirou fundo.
— Não sei, mas estou doente! Chamem um físico! Preciso curar-me! Assim, não poderei servir Alá, nem o emir, nem o meu povo, nem a mim próprio!
Vieram ao palácio os melhores físicos da região. Todos faziam as suas prescrições. Mas o governador não melhorava. Confessava ao seu melhor amigo:
— Não sei o que tenho, mas prefiro a morte a este sofrimento... Dir-se-ia que sinto fogo nas entranhas!
E respirando a custo:
— Dá-me água! Somente quando bebo água consigo algum alívio.
O amigo olhava-o consternado.
E os homens, sem o estímulo forte dum chefe de vontade férrea afrouxaram na defesa do território.
Foi assim que os cristãos chegaram às imediações de Almofala. A luta foi muito violenta, mas os mouros não tardaram a ceder.
Salúquia não se fechou em casa como as outras mulheres. Era sempre diferente. Saiu para o campo, fugindo aos combatentes. Vagueava como louca, falando sozinha, chorando sozinha. Foi numa dessas fugas que Salúquia ouviu gemidos e olhou, sobressaltada. Perguntou:
— Quem está aí?
Um homem já de meia-idade respondeu-lhe.
— Sou eu! Podes aproximar-te... porque estou ferido!
Ela acercou-se do homem. Olhou-o intensamente. E voltou a perguntar:
— Quem és e que fazes aqui?
Ele tentou sorrir.
— Sou um homem que está ferido... Caí numa armadilha!
Salúquia reparou então que o homem tinha uma perna presa numa das armadilhas que os da sua raça colocavam nos limites da povoação, não fossem os cristãos entrar de noite...
— Bem vejo... És cristão e caíste numa das nossas armadilhas! Que queres tu que eu faça?
Dominando a dor, o cristão replicou:
— Quero que me salves! Como vês, tenho esta perna quase despedaçada. Ajuda-me a sair daqui!
Ela reteve um movimento de revolta:
— Ajudar-te, eu? Não vês que sou moura?...
— És moura e linda! És mulher, principalmente. E as mulheres são menos cruéis que os homens.
Salúquia teve um trejeito de amargura.
— Pensas assim? Pois enganas-te! Devias ver o nosso governador!
— Que tem ele?
— Sofre!
— De amor?
Ela teve um esgar de raiva.
— Oh, não! Sofre de moléstia estranha. E foi uma mulher que o pôs assim!
— Talvez o merecesse.
— Talvez!
— Ele é mau?
— É justo!
Salúquia surpreendeu-se com a sua própria frase e o tom da sua voz. Tentou disfarçar a emoção que a invadiu:
— Vou-me embora. Não devo ajudar-te. Se o governador soubesse, matar-me-ia!
O cristão suplicou:
— Ajuda-me! Ele não saberá!
— E se souber? Que pensará de mim?
— Que salvaste um ser humano. Que és boa, caritativa...
Ela riu com nervosismo.
— Eu, boa?... Se soubesses... Se ele soubesse...
— Que te fazia?
— Matava-me!
— Que lhe fizeste para que te julgasse assim?
Ela abanou a cabeça.
— Não deve importar-te o que se passou entre mim e ele. És cristão, não pertences aos mouros!
O cristão continuou:
— Não sei, de facto, o que se passou entre ti e o governador. Mas sei que o amas…
— Eu?
Foi quase um grito que saiu da boca de Salúquia. Afastou-se do cristão. Ia fugir. Ele gritou-lhe também:
— Não te vás! Se soubesses como sofro!...Ajuda-me e eu te ajudarei, Salúquia!
Ela abriu os olhos num espanto.
— Sabes o meu nome?
Ele sorriu com esforço:
— Como vês.
— Quem to disse?...
Ele apressou-se a impressioná-la mais.
— Foi o meu Deus. Foi ele ainda que me divulgou o teu amor pelo governador. E julgavas tu que o odiavas!... Amaldiçoaste-o... E ele ama-te, também. Nunca mais te esqueceu.
Salúquia levou as mãos ao rosto. Chorava.
Depois descobriu-o, perplexa.
— Ouve, cristão. Se o teu Deus te disse tudo isso, porque não te ajuda a sair daí?
— Porque quer ajudar-te também.
— A mim?
— Sim, a ti.
— Como?
— Se me ajudares a sair daqui, cometerás uma boa acção para com um cristão. Em troca, Ele, por meu intermédio, dar-te-á a possibilidade de anulares o mal que fizeste ao teu governador.
— Como?
— Ajuda-me e verás.
Tomando uma súbita resolução, a jovem moura ajudou o cristão a sair da armadilha. A perna do homem apresentava largos ferimentos donde escorria sangue abundante.
Com a respiração um tanto opressa, o homem falou:
— Salúquia, que Deus te recompense! E agora leva-me até além... àquela nascente...
— Vais estancar o sangue com água?
— Sim. Tu verás.
— Bem, vou ajudar-te. Mas se alguém nos vê estaremos perdidos!
— Talvez nos vejam… mas só ganharás com isso.
— Que dizes?
— Tu verás. Vamos!
Auxiliando-o conforme pôde, Salúquia levou o ferido até à nascente. E com grande espanto seu verificou que o homem, apenas deitava a água sobre as feridas, logo o sangue estancava e a pele parecia recompor-se.
Ele murmurou com unção:
— Louvado seja Deus!
Nesse momento ouviram-se os passos de um cavalo que se aproximava. Salúquia olhou nessa direcção. Apossou-se dela um medo estranho. Tremeu-lhe a voz.
— Cristão, fomos descobertos! Ele vem para aqui!
— Deixa-o vir! Não percas a tua fé! Este momento será decisivo para a tua vida.
Ela concordou:
— Bem sei! Para a minha vida ou para a minha morte!
— A Virgem Mãe de Deus vai ajudar-nos.
Mas já o governador parava o cavalo e desmontava. Aproximou-se e indagou:
— És tu, Salúquia?
— Duvidais?
— Não. Os mesmos olhos... o mesmo corpo... a mesma voz... Só a expressão está diferente.
— E tu, não és o mesmo?
— Não, não sou o mesmo. Sofro e bem sabes porquê. Estás contente?
Ela baixou o olhar. Só então o governador pareceu reparar no ferido.
— Quem é este homem? Não parece dos nossos!
Salúquia olhou de novo o governador.
— Encontrei-o. Está ferido.
— Caiu numa das nossas armadilhas, não é assim? É um cristão. E para esse já tu, Salúquia, soubeste ser caritativa. Que pensas que vou fazer dele e de ti?
Salúquia encolheu os ombros. Não parecia mais a mesma mulher altiva.
— O que achares justo!
Respirou fundo o governador. Fizera-se subitamente pálido. As dores agudas de que sofria voltavam a apoquentá-lo. Não queria dar parte da sua fraqueza. Mas era-lhe impossível continuar de pé.
O cristão perguntou, vendo-o encostar-se ao cavalo:
— Sofreis, senhor?... Ora bebei um pouco desta água.
E fazendo das mãos uma concha, ofereceu-a ao governador.
Sem bem saber porquê — talvez porque nesses dolorosos momentos só a água lhe suavizava as dores — o governador aceitou a água e correu a beber mais. Bebia sem parar. Quase a perder o fôlego. Depois, ficou-se uns momentos olhando a limpidez da nascente, sem falar, sem se mover.
Quando voltou a olhar Salúquia, exclamou:
— É estranho! Sinto-me melhor. Muito melhor. Quase curado! Já nada me dói!
Salúquia deixava que as lágrimas lhe corressem pelo rosto. O governador foi até junto da jovem moura. Pegou-lhe numa das mãos. Indagou:
— Salúquia! Porque choras?
Ela murmurou, baixinho:
— Daria a vida por ti!
Ele atraiu-a de encontro ao seu peito forte.
— Minha bela Salúquia! Como pudemos viver tanto tempo separados por um ódio fictício? Desde o primeiro momento que nos amamos!.. Mas fomos ambos orgulhosos e sofremos por isso. Agora tudo será diferente. Estou curado e encontrei-te!
De súbito dera pela falta do cristão. Ele sorriu:
— Foi-se embora. Melhor assim. Tirou-me de possíveis embaraços. Quanto a esta água... creio que tem poderes estranhos. Realmente muito estranhos!...
E conta ainda a lenda que Salúquia e o governador viveram felizes desde então.
A terra de Almofala foi mais tarde conquistada pelos cristãos. Mas Salúquia e o governador receberam a graça do baptismo. Quanto à água milagrosa da quase desconhecida nascente de Almofala, essa continua a manter as suas extraordinárias virtudes.
- Source
- MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume III, pp. 339-346
- Place of collection
- Almofala, FIGUEIRA DE CASTELO RODRIGO, GUARDA