APL 898 A fonte dos engaranhos

Na aldeia de Couços, freguesia de Múrias, Concelho de Mirandela, existe uma fonte célebre, chamada Fonte dos Engaranhos.
 A razão desse nome estranho deve-se às suas águas que, segundo os habitantes da aldeia, curam as crianças engaranhadas, isto é, as crianças raquíticas ou enfezadas.
 As mães, com filhos nessas condições, vão lá mergulhá-los e depois deixam aí os vestidos que levam, para, com eles, ficar também o mal.
 Esse poder de curar, que tornou a fonte muito conhecida e procurada, deu origem a esta lenda bem curiosa.


 Certa noite de luar, passou por lá um aldeão que regressava do trabalho e se dirigia para sua casa. Ao passar, mesmo rente à pocinheira da fonte, sentiu um leve ruído que o sobressaltou.
 Olhou para lá e viu, com grande surpresa, uma linda donzela que penteava os cabelos negros com um pente de oiro fino. Assustou-se com aquela inesperada aparição, mas logo se acalmou, quando ela lhe começou a falar, com uma voz meiga que inspirava confiança:
 - Não tenhas receio, meu bom amigo, que eu não faço mal a ninguém. Eu sou uma moira encantada, condenada pelo destino a passar mil anos nesta fonte, transformada em cobra. Se fores capaz de me desencantar, dar-te-ei todos os meus tesoiros, porque sou muito rica.
 - E que tenho de fazer para isso? — perguntou o homem.
 - Nada, absolutamente nada. Basta que me deixes dar-te um beijo na boca, quando me tiver transformado em cobra. Mas não podes estremecer.
 - Está bem, aceito. Coragem não me falta, diz o aldeão.
 - Então prepara-te, que eu vou voltar à minha forma habitual.
 Dito isto, transformou-se repentinamente numa enorme cobra preta e começou a aproximar-se do homem, já um pouco receoso.
 Primeiro, enroscou-se-lhe às pernas. Depois, trepou-lhe à cinta e subiu-lhe ao peito, muito vagarosamente, para não o assustar.
 O aldeão mantinha-se calmo, sem pestanejar. Mas, quando a serpente lhe tocou na boca para lhe dar o beijo, que era a prova de fogo, sentiu um arrepio na espinha que o fez estremecer. Foi o bastante para deitar tudo a perder.
 Imediatamente a cobra se desprendeu e caiu ao chão, retomando a forma de mulher, para lhe dizer:
 - Dobraste-me o encanto: agora, tenho que estar aqui mais dois mil anos. Não conseguiste desencantar-me, mas revelaste muita coragem e boa vontade. Por isso, vou ajudar-te a viver bem, sem teres necessidade de trabalhar.
 Toma lá três moedas de oiro e volta cá, sempre que precisares de mais.
 O camponês pegou nas três moedas de oiro e foi para casa, a esfregar as mãos de contentamento. Nunca na sua vida tinha tido nas suas mãos uma tal riqueza.
 Daí em diante, ninguém mais o viu a trabalhar e todos andavam intrigados com a vida de rico que levava: sapatos de verniz, meias de seda, fato de casemira, camisa de popelina e gravata de luxo.
 Bem comido, bem bebido, lavado e escarqueijado, suscitava a inveja e a admiração dos vizinhos que se interrogavam uns aos outros:
 - Donde lhe virá o dinheiro para estes luxos? Aqui há coisa grossa. Quem cabritos vende e cabras não tem de alguma banda lhe vêm.
 Bem tentavam saber dele a razão daquela mudança. Mas ele encolhia os ombros e não se descosia.
 Até que, um dia, um amigo que tinha mais confiança com ele lhe disse à queima-roupa:
 - Olha que o povo não se cala e já diz que tu andas a roubar ou tens pacto com o Diabo. Não queres revelar-me o teu segredo? Não confias em mim?
 Então, ele abriu-se e confidenciou ao amigo que ia buscar o dinheiro à fonte dos engaranhos. Foi a sua desgraça.
 No dia seguinte, voltou à fonte, mas já não viu as moedas que a moira encantada lhe punha à tona da água. No seu lugar, apenas enxergou três pedaços de carvão. Regressou, pois, a casa muito triste, de mãos abanar.
 E, como não soube poupar, pensando que a mina não se esgotava, teve de voltar ao trabalho duro. Então, quando os vizinhos lhe perguntavam pelo dinheiro da fonte, respondia, com alguma dose de humor:
 - Água o deu, água o levou.
 Agora, quando alguém diz que precisa de dinheiro, as pessoas respondem-lhe:
 - Vai à fonte dos engaranhos.
 Ou então, se alguém vive bem sem trabalhar, comentam:
 - Este vai à fonte dos engaranhos.
 Mas, se a fonte deixou de dar dinheiro, para sustentar preguiçosos, continua a dar água milagrosa, para curar as crianças engaranhadas.
 E esse poder de curar — diz o povo — vem-lhe da moira encantada que tem bom coração e gosta muito de crianças.

Source
FERREIRA, Joaquim Alves Lendas e Contos Infantis Vila Real, Edição do Autor, 1999 , p.9-11
Place of collection
Múrias, MIRANDELA, BRAGANÇA
Narrative
When
20 Century, 90s
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography