APL 1305 O Servo de Deus da Ilha Terceira
No último quartel do século dezoito vivia, na Terceira, um pobre velho de nome Teódulo Afonso, mas mais conhecido por Servo de Deus.
Um franciscano, conhecedor profundo da língua grega e da cultura arábica, explicara um dia que Teódulo era um termo grego que significava “servo de Deus” e Afonso, uma palavra árabe sinónima de “bem-aventurado”. Por isto o nome e a alcunha estavam em perfeita comunhão com a vida interior de Teódulo Afonso, pois era um pobre de espírito, rico em honestidade, sem bens terrenos, mas feliz e excêntrico.
O Servo de Deus fora soldado na India e em Magazão e lá presenciara as maravilhas operadas pelo talismã do elefante branco. Por isso, conservava como uma preciosidade uma figa feita de um dente desse animal, que era toda a sua riqueza.
O capitão geral dos Açores, Dinis Gregório de Melo e Castro, último governador do Mazagão, distinguia com especial benevolência o Servo de Deus.
Teódulo era devoto da fé católica, mas supersticioso: fazia a sua searazinha, germinando o trigo para o culto do Menino Jesus; acreditava que o eirado duma lua cheia podia trazer chuva, mas também podia pronunciar morte.
Era o começo de Julho. O Servo de Deus andava doente e dava como certo que havia de morrer num formoso dia de Verão, sendo a sua morte anunciada pelo eirado duma lua cheia. Procurou um frade para se confessar e adquirir um hábito de irmão terceiro para a sua mortalha. Dispôs os seus escassos bens para que fossem rezadas, quatro missas: a Nossa Senhora do Amparo, à Senhora da Guia, ao Anjo da Guarda e a S. Nicolau. Legou a sua figa de dente de elefante branco, que tanto estimava, ao capitão geral Dinis de Meio e Castro e pediu que não se esquecesse de dar o fato de alma, costume bastante arreigado na crença dos terceirenses e dos açorianos em geral. Esta vestimenta é aquela com que o defunto há-de aparecer no juízo final.
Numa formosa manhã de Julho, quando a lua cheia, rodeada de um grande eirado, acabava de pôr-se no ocidente e o sol despontava para a vida, o Servo de Deus, calma e tranquilamente, entregou a alma ao criador.
Na noite seguinte caiu chuva grossa como a lua tinha anunciado. Passado algum tempo, o vulto do Servo de Deus, trajando o hábito de frade terceiro, apareceu a diversas pessoas, dizendo que o seu herdeiro não dera o fato de alma e que, se alguém não o desse, teria de, com imensa vergonha, aparecer nu no juízo final.
O capitão geral, sabendo isto, prontificou-se a dar a vestimenta de alma e nunca mais o Servo de Deus apareceu, porque no além-túmulo estava satisfeito e em paz.
- Source
- FURTADO-BRUM, Ângela Açores: Lendas e outras histórias Ponta Delgada, Ribeiro & Caravana editores, 1999 , p.133-134
- Place of collection
- Angra (Sé), ANGRA DO HEROÍSMO, ILHA TERCEIRA (AÇORES)