APL 66 O pateo da morte
Quem a deshoras passar pela rua da Bandeira em Vianna do Castello ha de sentir, através de largo portão encimado por velhas pedrarias, gritos dolorosos, por tal modo lancinantes que, se tiver coração, ha de escutar, calando o ouvido, com intenção de defender a pobre moça que tão amargurada parece estar. Moça é, e das mais belas; a voz, apesar de repassada de angustias, vibra tão argentina e acariciadora, que não ha imaginação que não adivinhe estarem ali immersos em pranto requintes de gentileza.
Pelas palavras entrecortadas de suspiros descobrirá novella de amores. Talvez, ha de pensar o viandante, só chorem assim nos seus leitos de virgem as mulheres que se illudiram num primeiro amor,— lagrimas capazes de abalar pedras se vistas fossem, mas tão recatadas e sósinhas, que nisso mesmo está o seu encanto, e nesse encanto a falta de remedio. Mas a desgraça é outra, e porventura maior que a desillusão; e é certo que as pedras se abalam!
Se o velho portão se abrir a empuxão que lhe deres, e um raio de luz illuminar a scena, verás em pateo espaçoso a estatua de um cavalleiro antigo; e tudo será silencio. Para onde fugiu essa mulher que te incendiára a imaginação?
Não sei; mas não te approximes da estatua, não procures sobretudo descobrir atrás della algum vulto que se esconda; senão, ai de ti, que prestes golpe de espada invisivel te deixará mal ferido.
Nessa casa viveu ha seculos Brites Quezado, senhora da mais extremada belleza e de prosapia tão entroncada em visigodos que não havia ali Entre Douro e Minho quem se lhe avantajasse em fidalguia. Alta, magra e flexivel, branca e loira, é como a pintam os chronistas; e dizem elles — e diz o povo, que mais conhece retratos de lendas — tinha, a contrastar com a alvura da tez e o doirado dos cabellos, uns olhos negros, tão negros, que ainda ninguem víra uns olhos negros assim.
Os attractivos da donzella eram muitos; á altivez de raça ella podéra unir taes primores de bondade, que nenhuma outra conseguia nem mais respeitos nem maiores enthusiasmos. Era por isso requestada pelos grandes senhores da villa e arredores.
Logrou primazia no coração de Brites, Lopo da Rocha, esbelto moço de elevada estirpe e sentimentos altos; e, apesar de todoo empenho dos pais d’ella em desposal-a com seu primo João de Alvim, os impulsos do amor foram mais fortes que a insistencia da familia.
Por igual a adoravam o noivo que lhe destinavam, e aquelle a quem ella entregára a sua fé.
Haviam-se entendido os dois, Brites e Lopo; embora ainda só em segredo, não deixou de o perceber João de Alvim, que a pouco e pouco se foi afastando, e retrahindo num silencio torvo, promettedor de vinganças.
*
Principiou a alvorecer; o sarau ia findar na casa da rua da Bandeira. Lopo da Rocha, ao despedir-se da sua desposada, supplicára-lhe que fitasse nos seus os olhos d’ella dizendo que, semilhante ao nadador, que antes de mergulhar enche os pulmões de ar puro, assim pretendia elle armazenar no coração o olhar da mulher a quem tanto amava. Parecia-lhe — acrescentou — que nesse olhar levava um pedaço da alma estremecida.
Esta conversação passava-se no vão de uma janella que abria sobre o pateo. Brites sorriu da comparação, e graciosamente fitou muito, muito, os seus olhos nos do moço apaixonado. Com tão indizivel ternura se quedáram assim os dois, que bem podia ter vindo d’ahi a conhecida quadra:
Tenho os olhos tão pregados
Nesses lindos olhos teus,
Que, de tanto se encontrarem,
Já nem sei quaes são os meus.
Loucuras de namorados, que a leitora de hoje, nascida em epoca tão avessa a romanticismos, ha de perdoar, por quem é, aos que viveram em tempos que em tudo se extremavam tanto dos actuaes. Ou os sentimentos eram então mais fortes, ou porventura o modo de os extetiorisar menos sujeito a convenções.
Por isso foi que Brites, ao terminar o enleio, disse:
— Levas a minha alma inteira. Viva ou morta, serei sempre tua.
— Juras? — perguntou o fidalgo, perturbado, e como se lhe houvesse passado pela mente algum presentimento.
— Porque empailideces? — inquiriu a donzella assustada.
— Jura — instou elle, tomando-lhe uma das mãos e apertando-a desusadamente.
— Juro! Viva ou morta, serei sempre tua, e seguirei a tua sorte no mundo e na eternidade!
Saiu o cavalleiro, e, ao chegar ao pateo, como ia distrahido, roçou pelo hombro de um embuçado.
— Cautella quando passardes, villão! — exclamou o desconhecido.
— Mentis! — redarguiu Lopo da Rocha, levando a mão ao espadim.— Villão sois vós, que injuriais quem vos não offende.
O vulto largou a capa. A luz tenue do crepusculo viu Lopo da Rocha que tinha defronte seu rival. João de Alvim.
— Villões são os que fazem villanias — disse este — e requestam fidalgas ricas ás escondidas de seus pais. Villão sois, Lopo da Rocha! — e vibrou-lhe golpe tão valente e inesperado que lhe rasgou as entranhas.
O aggredido recuou dois passos; ia talvez morrer sem vingança. Neste momento apparecia no alto da escada Brites, acudindo ao ruido. O mancebo, prestes a desfallecer, chama a si toda a coragem, aperta com a mão esquerda a larga ferida, e avança para o adversario, enterrando-lhe no peito o espadim. João caiu morto, e morto caiu sobre elle Lopo da Rocha.
*
Porque foram os dois cadaveres sepultados no pateo, não o poderemos dizer; afirma-o a tradição, é quanto basta; e diz tambem que sobre a campa de Lopo da Rocha foi collocada a estatua que lá vemos ainda.
Brites enlouqueceu, e, durante os poucos annos que lhe restaram de vida, ia todas as noites, á hora em que fizera o seu juramento de amor, olhar fito, muito fito para os olhos d’essa estatua. Não consentia que ninguem na acompanhasse; mas pessoas curiosas, que uma ou outra vez iam espreitar, afirmavam que a pedra, transmudada em figura com vida, se mexia e falava!
Morreu a desditosa; mas o seu espirito continuou sempre na sua missão de caridade e amor. As horas mortas da noite lá apparece no pateo a formosissima senhora. Crava os seus olhos negros nos olhos da estatua, que pouco a pouco se transforma em cavalheiro solicito e apaixonado.
Por instantes a felicidade dos dois é porventura completa; depois succedem-se as tristezas e as lagrimas, o que é naturalissimo, porque os amores das almas penadas devem ter o mesmo fel dos nossos, ou elles não fossem amores.
E, acabada a singela narrativa, peço ao leitor que imagine, se puder, o que seria o olhar d’aquelles olhos negros, tão negros, que nunca mais ninguém viu uns olhos negros assim!
- Source
- BERTIANDOS, Conde de Lendas Ponte de Lima, Hospital Conde de Bertiandos, 1993 [1898] , p.54-60
- Place of collection
- VIANA DO CASTELO, VIANA DO CASTELO
- Collector
- Conde de Bertiandos (M)