APL 72 O galgo preto
Se alguma vez passares ao anoitecer na ponte que dá o nome á encantadora villa do Lima, talvez enxergues uma sombra dando reviravoltas no areal, approximando-se do rio, parecendo beber com sofreguidão, quedar-se a olhar attonita para a corrente das aguas, e depois caminhar vagarosa e cabisbaixa para os lados de Vianna, até desapparecer de todo.
Correndo atrás d’ella, correrá tambem, e, quando suppozeres que está perto, has de vel-a dar um salto, e sumir-se nos ares.
A configuração do duende não ta saberei dizer; o ovo teima desde longo tempo em chamar-lhe o Galgo preto do areal. Ha quem no tenha visto sair detrás da igreja dos Terceiros; donde vem, para onde vai, ninguem o pôde ainda explicar.
É uma alma penada. Não tenhas duvida, leitor; pois que outra coisa pôde ser uma apparição de tantos annos, em fadario assim constante e aborrecido?!
*
Quando EI-Rei D. Manuel foi a Ponte do Lima levou na comitiva um galante moço, a que muito se affeiçoára, por nome D. Ruy de Mendonça.
Dividiram-se os cavalleiros do sequito, luzido e numeroso, pelas casas dos fidalgos; e coube a D. Leonel de Lima albergar o escudeiro valido.
Era D. Leonel de honrada estirpe e ainda aparentado, segundo diziam, com a familia dos viscondes de Villa Nova da Cerveira; mas pobre, e malavindo com os parentes, pois casára á sua vontade (conforme o dizer dos linhagistas) com a filha de um cavalleiro, cujo nome não andava nos livros de El-Rei, filha que houvera de uns amores em Arzilla com uma sectaria de Mafoma.
Assim como nas igrejas não é permittido que se venerem duas imagens da mesma devoção, não quiz tambem a natureza que o typo ideal da mulher tivesse naquella casa duas representações iguaes; e talvez por isso Magdalena — que assim se chamára a christã filha da moira — finára-se tranquillamente no dia em que sua filha Beatriz de Lima completára dezaseis annos, e podia já substituil-a no labutar quotidiano e creação de dois irmãos de curta idade.
Era uma joia esta Beatriz, mas que ninguem appetecia. Não só lhe faltavam occasiões de apparecer, mas, naquellas poucas em que a viam, era o seu trajar tão simples, contrastando por tal fórma com a magnificencia do trajar de suas parentas, que os mancebos dos arredores preferiam, a prescrutar-lhe os encantos, dedicar-se ás frequentadoras triumphantes dos saraus, ou espinotear os seus ginetes em frente ás gelosias das grandes herdeiras. Alem d’isso, a sua belleza tinha antes a suavidade do luar que o brilho do sol; não havia os resplendores que atordoam nos seus olhos limpidos e claros, nem no seu porte modesto os meneios que seduzem.
Era uma santa, diziam; e talvez fosse. Comtudo, se alguem mais perspicaz attendesse ao seu olhar de certas occasiões, e reparasse como por vezes a sua mão nervosa se contrahia, adivinhava logo que naquella natureza alguma liga houvera que não provinha do ceo. Era talvez o sangue da avó moira a referver-lhe nas veias, da avó, que, segundo cochichavam as mulheres de alguns velhos homens-de-armas, fôra grande mestra em bruxedos e feitiçarias.
Ficar D. Ruy de Mendonça para logo preso de amores a Beatriz admirou de certo muito ás netas dos infanções e ricos-homens, que requintavam em galas e louçanias para agradar ao moço cortezão, e chasqueavam soberbas da neta da africana; mas não era justo o reparo. A grandezas de luxuosa fidalguia, a primores de elegancia e opulencia estava o escudeiro habituado; nesse genero não podia encontrar na villa coisa que o espantasse.
E parecer-lhe-ia talvez que se não casavam bem arrebiques vaidosos com a simplicidade amena da paizagem. A serra, o valle e a campina exigem, por certo, na mulher que tiver de lhes dar vida e colorido, alguma diferença das mentiras que a humanidade mais civilisada inventa para esconder em ouropeis a corrupção que vai minando os grandes centros.
Ai, netas dos infanções e ricos-homens! Beatriz, se não era melhor que vós, era ao menos mais artista…
Preso de amores ficára D. Ruy, e ainda se não atrevêra a confessal-o; por isso era maior o encantamento em que viviam os dois. Mas o amor é como que o ultimo brinco da gente moça, e alguma coisa traz de certo das contradicções da meninice. As creanças são tanto mais felizes com o brinquedo, quanto maior é o segredo do seu engenho; não descansam porém se o não partem, para satisfazer a curiosidade, e, ao approximar-se o desvendar do rnysterio, redobram de alvoroço, não reparando que vão assim estragar o que havia de melhor no entretenimento.
Um dia ao entardecer encontraram-se ambos, ao fundo da modesta horta banhada pelo rio.
Era a vespera da partida. El-Rei voltava á côrte, e a D. Ruy forçoso era acompanhal-o.
Estavam tristes e scismadores; talvez o coração lhes presagiasse que seria aquelle o derradeiro crepusculo em que assistiriam juntos ao apparecer das estrellas, a essa especie de saudação garrida que a noite manda aos que tém a cortezia de a esperar com respeitosa affeição. Talvez; mas nem por isso eram menos felizes: ha contentamentos e tristezas que andam tão confundidos no coração!
Como se quebrou este enleio dos dois enamorados, não o diz a lenda, que só nos transmittiu as ultimas phrases do dialogo que após elle tiveram; phantasie cada um, como as suas lembranças lho consentirem, e, se quizer imaginar com mais probabilidades de acerto, vá sentar-se na relva á sombra das duas grandes arvores que estão no sitio, e são ainda as mesmas que presenciaram a scena, a acreditar no asserto do povo. Eu por mim acredito.
A tradição conservou apenas o final do colloquio, e esse deve ser textual, porque toda a gente o conta do mesmo modo.
— Juras? — perguntou Beatriz.
— Juro.
— E atreves-te a jurar sobre as aguas correntes? — insistiu a donzella, faiscando-lhe no olhar esse não sei quê da sua natureza que não provinha do ceo.
— Juro! — confirmou o mancebo, estendendo as mãos para o rio— e se eu faltar seja negra a minha alma emquanto estas aguas correrem!
*
Decorreu apenas um anno. É grande a azafama no palacio dos Mendonças, em Lisboa. O dono da casa vai finalmente participar a toda a côrte estar justo o casamento de sua filha, herdeira de seus grandes haveres e nobreza, com o unico parente que poderia continuar aquella representação na mesma varonia.
As instancias do Rei, e todas as rasões heraldicas da familia não tinham por muitos mezes conseguido resolver D. Ruy a julgar-se indispensavel para conservar sem quebra uma raça de cortezãos.
E nunca o resolveriam certamente essas considerações. Estou até em afirmar que podéra muito mais com elle a belleza magestosa da prima, e não menos a esperança de uma vida com fausto e poderio. As riquezas do oriente iam perturbando as imaginações, e os netos dos cavalleiros da Ala dos Namorados necessitavan preparar-se com tempo no exaggero do luxo e dos prazeres materiaes, para darem de si como presente á sua terra esses grandes senhores que haviam de entregar um dia a Castella o reino, conquistado ás lançadas pelos seus rijos antepassados.
Vai grande azafama no palacio dos Mendonças. As salas enchem-se de convidados, e todos esperam contentes ou invejosos a noticia formal de estar satisfeita a prosapia do neto, dos soberanos de Biscaia... Só o noivo é quem falta ainda.
Vai grande tristeza no palacio dos Mendonças. Morreu de repente, ao entrar para o coche, D. Ruy, o perjuro…
Desde essa noite em diante começou a apparição do Galgo preto nas margens do rio Lima!
A sua alma ha de ser negra emquanto as aguas correrem!
*
Leitor ousado, que te ris da crendice popular, ouve-me por piedade. Se alguma vez fores á beira Lima, não faças juras fataes sobre as aguas correntes. Naquelle rio escondem-se terriveis segredos, e lá anda pelo norte, espalhado em certos olhares, esse algo subtil que não provém do ceo.
Por piedade, sobre as aguas correntes não faças juras fataes!
- Source
- BERTIANDOS, Conde de Lendas Ponte de Lima, Hospital Conde de Bertiandos, 1993 [1898] , p.115-123
- Place of collection
- PONTE DE LIMA, VIANA DO CASTELO
- Collector
- Conde de Bertiandos (M)