APL 2812 Lenda do Castelo de Alcoutim

Foi por alturas do ano de 1240. Parte do Sul do Alentejo e algumas terras do Algarve haviam já caído em poder de D. Sancho II. E Alcoutim, vendo-se desamparada e cercada, acabou por render-se.
Chefiando os primeiros guerreiros cristãos escolhidos para entrarem no castelo, ia D. Rui Gomes, cavaleiro distinto, fidalgo muito querido pelas damas da corte. De pulso vigoroso, fez cumprir as ordens do seu rei para que fosse poupado todo o mouro que se entregasse e reconhecesse vencido.
Chegado à sala principal do castelo, o cavaleiro cristão encontrou-se com o ex-alcaide. Junto dele, estava uma linda moura, que atentamente observava o cavaleiro português através dos seus olhos de um negro invulgar.
O ex-alcaide saudou-o.
— Salaam! Estás em tua casa. Não quis partir sem cumprir até ao fim o meu dever. Esta é a minha sobrinha Zuleima.
D. Rui Gomes olhou-a profundamente. Sorriu-lhe, cavalheiresco, num cumprimento gracioso. E voltando-se de novo para o ex-alcaide, disse:
— Ouvi dizer que tinhas um filho.
A expressão do velho mouro fechou-se.
— Sim, tenho. Mas Ali Hassan partiu sem esperar por ti. Devo, pois, ficar por ele!
— Por que se ausentou Ali Hassan?
— Porque não quis sujeitar-se à derrota. Ordenei-lhe que ficasse. Desobedeceu-me! Em sua substituição deixou-me Zuleima, minha sobrinha e sua noiva. Diz-me para onde devo ir morar.
— Não queres partir também?
— Não. Para quê?
— Para te juntares a Ali Hassan.  
— Não. Aceito a derrota. Ele não a aceitou! É um guerreiro como tu. Poderás talvez compreendê-lo.
D. Rui voltou a olhar a jovem. E respondeu, levemente irónico:
— Não, não o compreendo bem. Zuleima devia valer para ele mais que o seu orgulho de guerreiro...
O ex-alcaide tentou desculpar o filho.
— Ali partiu para voltar!
— Pois quando voltar encontrar-nos-emos! O meu exército e o dele resolverão nessa altura o assunto. Não vou, como vingança, dispor da tua liberdade e da liberdade da jovem que te acompanha. Vai. És livre! Escolhe apenas um local para morar, dentro do território que foi estabelecido.
O ex-alcaide fez um cumprimento.
— Agradeço-te, e crê que saberás sempre onde me encontrar.
Zuleima então falou, deixando ouvir a sua voz de um timbre suave:
— Descansem. Ali Hassan não voltará para combater.
D. Rui Gomes sorriu-lhe. E declarou:
— Nesse caso... não voltará!
Baixou o olhar, o ex-alcaide. Parecia inquieto. Depois falou como se o fizesse apenas para a jovem moura.
— O regresso de Ali depende de ti apenas, Zuleima. Ele ama-te. Tu é que não quiseste partir com ele.
Os olhos da jovem moura encheram-se de lágrimas. Murmurou, olhando o ex-alcaide:
— Não podia deixá-lo só, meu tio!
D. Rui sorriu. E para quebrar o embaraço estabelecido entre tio e sobrinha, declarou com cortesia:
— Ninguém pode fugir ao que está escrito no Livro do Destino!
 
Um silêncio impressionante atabafava os campos, como mão possante a abafar o grito da natureza. O Sol descia para se esconder na linha do Oceano. No firmamento, nuvens de fogo punham reflexos estranhos na terra e no mar. Mas o silêncio continuava sereno, senhor dos campos, rei absoluto. Também eles — Zuleima e D. Rui — não se atreviam a quebrá-lo. Abraçados, olhavam esse fim de tarde, que por magia lhes punha na alma um travo de amargura. Os seus dedos faziam pressão no corpo que enlaçavam. Era o único contacto vivo, o único fluido que passava através dos nervos dos dois enamorados. Ele, porém, pareceu ficar inquieto. Ia falar. Ela pousou-lhe, suavemente, os dedos sobre os lábios. Foi ela quem quebrou o silêncio.
— Não digas nada! Deixa-me viver mais este momento de paz e amor! Tenho medo de qualquer ruído. Até da nossa própria voz…
Ele acariciou-a.
— Tontinha! Há mais de um mês que vivemos em paz. Que receias agora?
— Não sei. O outro dia debruçámo-nos sobre o poço. As nossas imagens viam-se ligadas, lá em baixo, nítidas e serenas. Mas um grãozito de areia resvalou e caiu. Foi o suficiente para que as nossas imagens se agitassem e deformassem...
D. Rui puxou-a mais ainda para si.
— Que louca és! Por que te preocupas tanto com coisas supérfluas? Amamo-nos e somos felizes!
— Sim, amamo-nos... Mas não somos felizes!
Ele admirou-se e afastou-a um pouco, para indagar:
— Que dizes? Por mim, declaro-te que nunca o fui como depois de conhecer-te!
Ela olhou-o com uma tristeza infinita.
— Tudo me diz que vou ficar sem ti!
— Pressentimentos?
— Sim. Posso mesmo dizer-te: quase certeza!
Ele suspirou.
— Só uma ordem de el-rei para deixar o castelo de Alcoutim e seguir para outras terras me poderia afastar de ti. Mas não é provável. O senhor D. Sancho conheceu agora o amor e vai casar-se. Recebi ainda há pouco essa notícia. Não pensará pois em guerras nestes meses mais próximos. E ainda que eu partisse... havia de voltar!
Zuleima escutara-o em silêncio. Depois meneou a cabeça e declarou:
— Não saberei viver sem ti!
D. Rui Gomes olhou, surpreendido, a jovem moura.
— Zuleima, assustas-me! Poderei ficar aqui mais algumas semanas... Mas sou guerreiro, não o esqueças! El-rei pode chamar-me e não poderei levar-te.
Silenciosas, as lágrimas começaram a rolar pelas faces morenas da bela Zuleima. Murmurou:
— Por isso eu sei que a minha vida durará enquanto o teu olhar estiver preso ao meu!
D. Rui inquietou-se.
— Zuleima, meu amor, não fales assim...
— Juro-o por Alá!
— Não jures! Nem tenhas pensamentos que nos roubem a felicidade...
— Bem quisera vê-los em debandada! Mas este pressentimento que me põe um nó na garganta quase não me deixa respirar!
— Querida… então!...
— Desde ontem que o trago comigo. Mas hoje... hoje quase sufoco!
Zuleima chorava. D. Rui alarmou-se ainda mais.
— Começo a recear os teus pressentimentos! Obrigas-me a voltar para o castelo. Já lá não vou há dois dias… e às vezes… pode chegar algum mensageiro d’el-rei. Seria desastroso se eu não estivesse lá para o receber e enviar resposta.
— Pois vai! Não devo prender-te.
— Voltarei amanhã de manhã. Tu é que me puseste inquieto. Preciso sossegar o espírito. Compreendes, decerto, a minha ansiedade.
— Compreendo. Vai, que o meu pensamento irá contigo.
Ele beijou-a e disse:
— Amanhã já estaremos novamente juntos!
Zuleima não respondeu. Mas as suas lágrimas continuaram a correr, num silencioso desabafo.
 
O pressentimento de Zuleima teve o condão de alertar o cavaleiro, D. Rui Somes. Galopava, ansioso por chegar ao castelo. Porém, ao passar por duas grandes azinheiras, quando as muralhas já estavam próximas, sofreou o andamento do cavalo. A angústia que o torturava sem saber porquê é que não diminuiu: aumentou! Quase a passo, D. Rui dirigiu-se para a entrada. Mas, de uma sebe, outro cavaleiro surgiu subitamente, atacando-o pelas costas com um golpe certeiro. D. Rui Gomes curvou-se primeiramente sobre a cabeça do cavalo. Depois, escorregando, tombou desamparado no chão. Relinchou o cavalo e soou, simultâneo, um grito estridente. E outro cavaleiro, que seguia atrás, caiu desmaiado aos pés do cavaleiro agressor. Este desceu rapidamente da montada e olhou o rosto de quem se cobria com um manto guerreiro. Era Zuleima, que seguira D. Rui, mas que chegara tarde para o defender. Então, Ali — pois era ele o cavaleiro embuçado — tomou-a nos braços, subiu com ela para o cavalo, e deu de esporas, correndo pelo campo.
O grito de Zuleima e o relincho do cavalo de D. Rui Somes tinham despertado as atenções das vigias do castelo. Saíram à pressa alguns guerreiros cristãos, receosos já pela demora de D. Rui. Mas, apenas passaram as portas, toparam com o cadáver do cavaleiro cristão. Não se detiveram, entretanto, pois outros desceriam a buscá-lo. Ao longe, ouvia-se o galopar do cavalo que levava consigo o assassino de D. Rui. Correram sobre ele. A distância começava a diminuir entre os cristãos e o mouro, cansado já o seu cavalo da caminhada até Alcoutim. Cercado, quatro lanças caíram sobre o guerreiro mouro e o companheiro, ignorantes, os cristãos, de quem era o guerreiro de capa branca que compartilhava da mesma montada. Assim morreu Ali Hassan. Assim terminou os seus dias a bela Zuleima, que tanto amara D. Rui, o cavaleiro cristão, morto traiçoeiramente por um guerreiro mouro...

E conta a lenda que ainda hoje, em determinadas noites, junto ao castelo de Alcoutim se ouve distintamente o chorar convulsivo da jovem moura Zuleima, procurando o seu bem-amado cavaleiro cristão.

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume III, pp. 37-40
Place of collection
Alcoutim, ALCOUTIM, FARO
Narrative
When
1240
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography