APL 2819 Lenda do Bolo Branco

Foi em Silves e há muitos anos que tudo isto aconteceu. Foi ali, perto do castelo ainda majestoso e sobranceiro, que se deram os factos que vamos relatar. Era noite. Noite luarenta. Noite cálida de Verão. Ouviam-se os ralos a cantar. Um manto de prata cobria a terra e o casario.
Cavalgando a bom cavalgar, um homem voltava do seu trabalho. Vinha de longe e seguia para casa, onde decerto a mulher o aguardava já com impaciência. Diogo era forte e animoso. Talvez por isso sabiam-no sem medo aos espíritos e às almas do outro mundo. Caminhava sozinho, aproveitando sempre os caminhos mais curtos, muito embora esses caminhos estivessem marcados pela tradição como eleitos das almas penadas.
Desta vez, Diogo dirigia-se pelo caminho do rio, junto ao castelo. Bem lhe diziam os companheiros que não devia desafiar o rei mouro enterrado ali com o seu tesouro. Bem o aconselhava a mulher a orar sempre pelas alminhas quando passasse ao pé do castelo. Porém Diogo era assim mesmo: forte, firme nas suas convicções, desempoeirado de pensamento – e teimoso, também. E desdenhando os conselhos e avisos, fazia sempre o mesmo caminho: a estrada do rio, em direcção ao castelo.
Ora, nessa noite, em determinado local do caminho, o cavalo do Diogo empinou-se subitamente relinchando de dor e quase fazendo cair o cavaleiro. Diogo segurou-o e falou-lhe, como se fosse a um racional.
— Que é isso, Malhado, que se passa? Então, meu velho, não te deixes espantar pelo medo. Passámos já tantas vezes aqui… Vamos, acalma-te! Ninguém nos fará mal, descansa. Sigamos para diante. Ânimo! A patroa deve estar à espera e em cuidado… Vamos, Malhado, não há tempo a perder!
Mas, apesar de toda a sua insistência, o cavalo não deu nem mais nem um passo em frente. Parecia seguro por mão férrea. E, aos poucos, perante o pasmo de Diogo, uma luz mais viva que a luz da Lua descobriu, como por encanto, uma figura diáfana de mulher vestida de branco e de cabelos soltos sobre os ombros.
O homem ficou perplexo. E a mulher vestida de branco perguntou-lhe com voz suave:
— Diogo... Sabes quem eu sou?
Diogo chamou a si toda a coragem para se mostrar sereno.
— Eu? Não sei, não, senhora...
— Pois fica sabendo que sou a filha do rei mouro aqui enterrado. Sou eu que guardo o tesouro de meu pai.
Diogo não escondeu o seu espanto.
— Mas... sempre é verdade que existe esse tesouro?
— Existe, sim. Queres vê-lo?
Ele não fez qualquer gesto. A moura insistiu:
— Queres? Ora espreita aqui, por esta pequena abertura na margem do rio...
Ele hesitou. A princesa moura sorriu.
— Terás tu medo pela primeira vez?...
Diogo sentiu a frase como uma chicotada. Levou o cavalo até à margem do rio e espreitou. O que os seus olhos viram encheu-o de espanto. Não pôde conter-se:
— Tantas jóias! Tanto ouro! Tanta riqueza! Isto bastava para enriquecer toda a gente da aldeia!
Sorrindo sempre, a moura insinuou:
— Tu poderás ser rico, se quiseres. Basta que faças o que te vou pedir.
Diogo franziu as sobrancelhas.
— Porque fui eu o escolhido?
— Porque és forte, és bom, és corajoso e detestas intrigas. Além disso... aprendeste a fazer bolos com a tua mulher.
Diogo olhou a jovem moura num assombro.
— Como o soube?
— Eu sei tudo!
Diogo pareceu ficar um pouco vexado.
— Foi por brincadeira... 
Ela animou-o:
— Não te envergonhes. Por seres bom é que tu a ajudas. Tu representas para mim o meio ideal para o meu fim.
— E qual é o seu fim?
— A minha libertação, em troca do tesouro de meu pai. Compreendes?
— Compreendo. Mas... quem havia de dizer que isto era verdade?... 
— Queres ou não ajudar-me? 
— Quero! Que devo fazer?
— Apenas um grande bolo. Assim, deste feitio… Estás a ver?
E desenhava com a mão uma espécie de rectângulo.
Diogo fez com a cabeça um sinal afirmativo. A moura tornou:
— Quero um bolo grande e muito branco, dividido em quatro partes. Depois levarás o bolo ao castelo, amanhã, sexta-feira, à meia-noite. Olha que tem de ser amanhã à meia-noite! Eu estarei à tua espera. E em troca do bolo, receberás uma fortuna para o resto da tua vida.
Ainda incrédulo, Diogo perguntou:
— É só isso, Princesa?
Ela responder:
— Só isso. Mas não podes dizer nem uma palavra de tudo isto a quem quer que seja!
— Nem à minha mulher?
— Nem à tua mulher. E será ela a que mais te provocará. Não cedas!
— Fique descansada, Princesa.
— Então, adeus… Vai, e não te esqueças! Ver-nos-emos amanhã à meia-noite, no castelo.
E sem mais recomendações a princesa moura desapareceu, tal como tinha aparecido.
Diogo levou as mãos ao rosto. Esfregou os olhos. Falava consigo próprio:
— Estarei sonhando? Mas não! Não poderia adormecer em cima do cavalo. Que vida a minha! Que devo fazer? Creio que não há outro remédio!
E dando de esporas:
— Vamos, Malhado! Para casa, depressa! Tenho de ir fazer o tal bolo branco!
Como se esperasse apenas o sinal do dono, o cavalo partiu a galope. Diogo não tardou a chegar a casa, no extremo de Silves. A mulher, já inquieta, correu para ele.
— Oh, homem! Demoraste tanto! Aconteceu-te alguma coisa?
Ele furtou-se a interrogações.
— Nada. Apenas um negócio que me apareceu no caminho.
A mulher mostrou-se surpreendida:
— Negócio, a estas horas?... Que espécie de negócio é esse?...
— Ora! Depois te conto. Agora deita-te e dorme, que eu tenho de trabalhar muito.
Cada vez mais surpreendida, ela mostrou a sua estranheza.
— Que dizes? Vais trabalhar agora?... Estás doido, com certeza. Vens estafadíssimo… Não comes… não descansas… e queres ir já trabalhar outra vez?
Diogo começou a enervar-se.
— Oh, mulher! Pela tua rica saúde, não me faças mais perguntas!
— Porquê?
— Porque não posso responder-te.
Ela postou-se na sua frente, tentando espiar-lhe as reacções.
— Mas que mistérios são esses, Diogo? Explica-te, pelo amor Deus!
Ele voltou-lhe a cara, dizendo:
— Não posso.
— Não podes, o quê?
— Explicar-te!
— Porquê?
Diogo perdeu toda a calma. Gritou:
— Já te disse que não te posso explicar nada! Deixa-me em paz, ouviste?
A mulher de Diogo olhou o marido, apavorada. Achou melhor não insistir. Dirigiu-se para a cama e deitou-se.
Então Diogo não esperou mais. Foi para a cozinha e começou a fazer o tal bolo branco, dividido em quatro partes. Nem o cansaço nem a impaciência o conseguiram vencer. E na manhã seguinte, quando a mulher se levantou, o bolo já estava feito. Cada vez mais surpreendida, ela não escondeu o seu espanto.
— Mas que é isto? Um bolo todo branco! Que bicho te mordeu?
Ele suspirou.
— Cala-te, mulher! Não dês cabo do nosso futuro!
— Qual futuro?
Diogo tomou uma resolução.
— Ouve, mulher! Vamos fazer uma combinação. Hoje não me perguntes mais nada até à meia-noite, percebeste?
— Confesso que não.
— Pois faz por entender! Amanhã já poderei contar-te tudo.
A mulher de Diogo olhou o marido em silêncio. Estava pálido, de olhos brilhantes. Chegou a pensar que ele teria eulouquecido. Mas não! Os seus movimentos eram certos, os seus raciocínios precisos. Que teria pois, surgido na sua vida? E porque teria feito aquele bolo? Agora compreendia o seu interesse em ajudá-la, em aprender coisas que só dizem respeito às mulheres. Tinha lá a sua fisgada! Mas porquê? Porquê?...
Diogo Suspirava. Andava de um lado para o outro. Espiava o movimento aparente do Sol no horizonte, indicando a caminhada do dia. Nã falava. Não comia. Parecia doente. Por fim, à tarde dessa sexta-feira, o cansaço pareceu dominá-lo. Diogo deitou-se sobre a cama e adormeceu. Entretanto, a mulher de Diogo, vendo-o adormecer, não pôde resistir à tentação que a assaltava. Pé ante pé, aproximou-se do bolo, mirando-o por todos os lados. Abanou a cabeça. Murmurou baixinho:
— Ná, aqui anda qualquer coisa de estranho! Para oferecer um bolo a alguém não vinha ele fazê-lo. A não ser... sim… a não ser que dentro dele tenha metido qualquer coisa... qualquer objecto que queira esconder de mim... ou de outra pessoa! Mas esconder de mim, porquê? Não sou eu a sua mulher? Devo saber tudo! E vou saber...
E sem mais delongas a mulher pegou numa faca e cortou um bocado ao bolo, para ver como era por dentro. Então, algo se passou de impressionante. Ouviu-se um grito de mulher, e do bolo começou a correr um líquido viscoso, vermelho-escuro, como sangue!
Ela largou a faca. Tremia. Quase nem respirava. Esperou que Diogo acordasse. Mas não! O marido não acordava com esse grito estranho de mulher, que ela tinha a certeza de ter ouvido.
Agora, o medo fazia-a arfar. Aquilo era decerto obra do Diabo e não de Deus. Persignou-se. Orou por largo tempo. Tanto quanto Diogo esteve dormindo. Mas quando a primeira badalada da meia-noite cortou o silêncio, o homem acordou num sobressalto.
— Oh! meu Deus! Como foi que adormeci?.. Estou perdido!
E num desespero incontido, sem reparar sequer no que sua mulher fizera, pegou no grande bolo branco e correu com ele ao castelo. Ali, já o esperava a linda moura que lhe aparecera junto do rio. Mas estava triste. Montava um cavalo com três pernas, pois a outra fora cortada e estava a sangrar…
Diogo esgaseou os olhos, espantado. Então a moura recriminou-o:
— Porque não tiveste o cuidado de seguir à risca as minhas instruções?
Atrapalhado, ele desculpou-se:
— Só dormi um bocadinho... Não sei como isso foi... Tive tanto sono!...
Ela olhava-o com severidade.
— É possível. Mas o certo é que nesse bocadinho aconteceram muitas coisas. O bolo já não me serve para nada! Olha, leva este cinto que eu ofereço a tua mulher.
Diogo olhou para o cinto que a moura acabava de colocar nas suas mãos. Mas apenas levantou os olhos para a olhar de novo, moura e cavalo tinham desaparecido como fumo. Aborrecido consigo próprio, pois compreendia que não havia mais tesouro, Diogo voltou para casa. Passando junto de uma árvore, e para descarregar o seu desespero, bateu com o cinto no tronco, à maneira de chicotada. Então, com enorme espanto seu, a árvore caiu cortada cerce, como se o cinto fosse lâmina afiadíssima!
Diogo atirou fora o cinto, num arremesso, e exclamou entredentes, num assomo de raiva:
— Maldita moura! Agora compreendo tudo... Foi a minha mulher quem cortou o bolo, cortando a perna do cavalo em que a moura pensava fugir. E a malvada, para se vingar, deu-me este cinto. Se ela o pusesse em volta da cintura, ficava logo cortada ao meio!... A moura era filha do Diabo, com certeza...
E, redobrando a marcha, encaminhou-se para casa, onde a mulher o esperava, rezando.
E ainda hoje se diz que junto do castelo e no caminho do rio da velha Chelb — hoje cidade de Silves — continua enterrado o tesouro da bela princesa moura. Tudo por via do tal bolo branco...

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume III, pp. 71-76
Place of collection
Silves, SILVES, FARO
Narrative
When
20 Century,
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography