APL 2831 Lenda do Abismo dos Encantados
A Quinta do Marim — importante propriedade que pertenceu a João Lúcio Pereira, pai do famoso poeta olhanense — é principalmente famosa pela água que a fertiliza. Mas, segundo os antigos, naquele mesmo local — há muitos anos, direi mesmo séculos — não havia água, e o terreno nada produzia. E o facto das coisas terem mudado com o tempo deu origem à lenda que passo a contar, tal como a ouvi. O local é o mesmo… mas na época mourisca.
O cavalo do jovem Abdalá sabia já de cor o caminho. Todas as noites que o tempo o permitia, lá iam, cavalo e cavaleiro, até à residência apalaçada do velho mouro Aziz. Chegados ao seu destino, o jovem desmontava sob uma janela florida, empunhava um alaúde e cantava trovas de amor que durante o dia compunha para a sua bem-amada. De tal forma o fazia, que já chegara ao palácio de Chelb a sua fama de trovador. Por isso e pela sua bela aparência, Alina, filha de Aziz, amava-o profundamente. Mas os seus amores eram contrariados pelo velho mouro, avarento da companhia da filha que adorava à sua maneira, egoísta e receoso do dote que teria de dar-lhe, se casasse! Por isso ela chorava e definhava-se. Por isso o velho mouro vivia preocupado, apesar da grande fortuna que possuía. Por isso ainda, Abdalá fortalecera a sua veia poética e tornara mais doce e cantante a sua bonita voz com aqueles amores contrariados...
O cavalo estacou. Abdalá desmontou. Olhou a janela fechada. Decerto Alina ainda não dormia. Pegou no alaúde e começou a cantar:
Ó minha bela mourinha,
Meu amor venho cantar
E dizer-te, vida minha,
Que contigo hei-de casar!
De mansinho, a janela abriu-se. Uma donzela espreitou. Sem um gesto, sem uma palavra. Apenas um sorriso iluminava a sua expressão de enleada amante. Tão enleada que nem deu pela entrada de seu pai no quarto. Só o viu quando ele lhe tocou num ombro.
— Que fazes aqui a estas horas tardias?
Apoquentou-se a moura.
— Senhor meu pai… Escuto uma balada…
— Já te disse que ainda és muito nova para casares!
Arriscou a moura:
— Mas se já fiz dezoito anos…
Enfureceu-se Aziz:
— Manda-o embora, vá! Quero que sejas tu a mandá-lo embora! E que nunca mais te apareça!
— Senhor, mas...
— Vamos! Tens de obedecer-me!
As lágrimas rolaram pelo rosto moreno da jovem.
— Senhor... eu amo Abdalá... nunca o esquecerei... Juro por Alá que não o esquecerei!...
Aziz mordeu os lábios. Espreitou para fora. Um luar formosíssimo banhava toda a enorme propriedade onde, ao centro, se erguia a moradia acastelada do velho Aziz. Em baixo, Abdalá emudecera. Vira o pai da sua amada e compreendera que algo menos poético se iria passar. Mas o homem chamou-o.
— Tu, que encantas as jovens com os teus cantares, vem cá, pois quero falar-te!
Abdalá nem se moveu, tão grande foi o seu espanto. Menor não se mostrou o de Alina. Mas Aziz insistiu:
— Vem! Apesar da hora tardia, vamos resolver este assunto. Vou mandar que te abram a porta.
Alina receou o pior. E soluçou:
— Senhor, tende piedade! Lembrai-vos que sem Abdalá não saberei viver!
Duro, embora sem gritos, Aziz comentou:
— Pois veremos se ele te merece…
No salão nobre, sós e frente a frente, Aziz e Abdalá fitaram-se. No rosto do jovem havia uma expressão de enervante expectativa. No do velho mouro, um sorriso de puro cinismo. Exclamou, num ar quase contente:
— O Sol vem ainda tardio, mas para tratar de assuntos de amor o tempo é sempre igual. Minha filha Alina ama-te. Serás tu digno do seu amor?
Arrebatadamente, o jovem afirmou:
— Daria por ela a vida!
Sorriu o velho, zombeteiro. Um pensamento íntimo dava-lhe essa expressão de troça que nem sequer procurava esconder. Olhou por segundos o jovem enamorado. Depois falou, mas desta vez sem sorrisos nem branduras.
— Pois bem! Não serei eu que contrarie as decisões de Alá. Mas quero que saibas que fiz um voto!
Surpresa no olhar e na voz de Abdalá.
— Um voto?
— Sim. Vou explicar-te. Os meus campos são largos mas sem água. Pois só deixarei que a minha filha Alina se case com o homem que, por amor, consiga transportar numa só noite, para junto do meu castelo, a nascente da fonte do canal!
Maior foi ainda a surpresa de Abdalá. Perguntou apenas:
— E onde fica a fonte?
— A treze léguas daqui.
Um silêncio profundo separou os dois homens. Mas, instantes depois, como se tivesse acordado de um sonho, o jovem mouro retirou-se sem qualquer comentário.
Sorrindo, o velho mouro exclamou para si próprio:
— Deste já eu me livrei!
No dia seguinte, Alina perguntou ao pai o que havia acontecido depois da conversa com Abdalá. O velho mouro, sorrindo, respondeu:
— Minha filha, disse-lhe que só concedia a tua mão a quem provasse amar-te como tu mereces.
— E como o provará?
— Não sei... isso é com ele... Esperemos pela noite. Talvez ele volte... ou talvez não volte mais...
Alma suspirou. Não respondeu. Sabia que Abdalá faria o impossível para provar o seu amor. Mas quando a noite chegou e as horas começaram a passar, e o silêncio rodeava o palácio sem novas do trovador, então Alina inquietou-se. Porque não viria o seu bem-amado? Que lhe teria dito, afinal, seu pai? Chorou Alina. Chorou amargamente. As horas pareciam-lhe dias. De súbito, quando era quase manhã, as notas de um alaúde cortaram o silêncio, e a voz apaixonada de Abdalá voltou a ouvir-se:
Viva Alá que tão bem me aludou
Nesta prova de um amor sem par!
Deste abismo a água jorrou,
Pois o prémio venho reclamar!
Ouvindo isto, Alina e Aziz correram cada um à sua janela. A água jorrava de uma cova profunda. Sorria Alma, feliz. Aziz mostrava-se fulo de raiva, pois jamais poderia supor tal prodígio. Não podendo faltar à sua promessa e não se conformando com a vitória dos namorados, correu ao quarto de Alina e dirigiu-se para a janela onde ela se encontrava. Vendo-o ela disse-lhe, radiante:
— Senhor meu pai! Acabo de saber que o vosso desejo se efectuou. Cumpri pois a vossa promessa! Dai-me a Abdalá!
Sem responder, com os olhos injectados de sangue, o mouro olhou o abismo donde a água jorrava. Mesmo à beira, o jovem mouro esperava ansioso. Então, como Alina lhe estendesse os braços, o velho mouro, completamente desorientado, atirou com a filha sobre o rapaz, que não conseguiu equilibrar-se e caiu com a noiva no abismo. Um grito uníssono soou. Um grito apenas. Depois, cortando o silêncio, só o marulhar da água correndo em catadupas...
Morreram os namorados? Diz o povo que não. O velho mouro, quando os viu desaparecer no abismo, recitou as palavras de encantamento. E ainda hoje há quem afirme ter visto, à meia-noite, um belo par de jovens passeando abraçados pela Quinta do Marim.
- Source
- MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume III, pp. 175-178
- Place of collection
- Quelfes, OLHÃO, FARO