APL 169 A alma do lagareiro
Quando era ainda pequeno, do tamanho destes miúdos, estava num monte, ali para os lados da Santa Sofia; para lá de Santa Sofia, que se chamava o Zambujal. E havia fama de aparecer por lá um medo, que se chamava o lagareiro. O lagareiro era uma pessoa que tinha morrido ali e depois dizia-se que aparecia (bom, eu nunca o vi). Aparecia. Aparecia e fazia mal às pessoas. Não sei bem o quê.
E eu era principiante, mas já não queria ser muito parvo. O que é que eu faço?
Andámos carregar a semente, aqui do monte da Abaneja para lá, para esse dito monte do Zambujal; lá, onde apareceu o lagareiro. E eu, como esperto, até sem ser, deitava-me em cima do cano (naquele tempo não havia tractores, não havia camioneta, não é verdade? Aqui há cinquenta e tal anos é que foi esse trajecto feito). Deitava-me em cima do cano e de manhã vinha a dormir até aqui. Em cima do cano, o homem conduzia as bestas, a parelha e eu vinha dormindo.
Aquilo no monte era assim: tinha urna cerca com um portão. Mas o portão não era fechado, só se fosse preciso. Do outro lado não tinha portão. E havia assim, lá no monte, uns cães grandes. Muitos. Eles deitavam-se por ali, à vontade deles, não é verdade?
Numa certa noite, larga noite, pr’aí sei lá, três horas da manhã, duas horas, aparecem dois cães “picaninos”, cada um com o seu guizo, que aquilo até dava impressão, como é que eles tão pequeninos se aguentavam ao luar, Jesus que luar!... E os cães passaram assim, assim, ao rés da parede daquele lado. Os cães grandes que havia lá no monte, custaram a dar conta para sair de lá pelo dito portão com medo deles... com medo daqueles pequeninos... mas lá fugiram; os grandes. E eu em cima do carro a ver aquele trabalho. Estava deitado, mas sentei-me em cima do carro a ver aquele trabalho. Ora essa, mas isto é o quê?! Mas o que será isto? Daí a nada apareceram os cães grandes, do outro lado. Tiveram que dar a volta completa, do outro lado, ao pé de onde eu estava. Vinham ladrando:
uoof...uoof... Eu fiz ponto de interrogação: Então, tanto cão grande com medo daqueles dois pequeninos? Bom, aquilo passou-se. Deitei-me, aquilo passou. Não tive medo nenhum.
No outro dia de manhã, toca para cá outra vez, para a Abaneja. Carregámos, fizemos a carrada e esperámos que os outros fizessem a carrada para irmos todos juntos.
A gente tinha de esperar pelo último a fazer a carrada. Éramos sete, oito ou dez. Enquanto esperávamos, virei-me assim para o homenzito da parelha: ‘ló ti Miguel, esta noite aconteceu-me uma grande parte...”. “O que é que te aconteceu’?”. “Eu estava deitado em cima do carro (deitava-me lá todas as noites. O ti Miguel engatava as bestas com muito jeitinho para eu não acordar. E a maior parte das vezes nem acordava no caminho) e passaram dois cães pequeninos e os outros fugiram todos com medo.., não sou capaz de saber o que era aquilo. Então os cães grandes têm medo dos pequeninos?” O ti Miguel esclareceu-me: “Pois têm, aquilo é que era a alma do lagareiro. Aquilo é que é a tal coisa que chamam o lagareiro.”
E assim continuei a minha vida com o lagareiro. E nunca vi mais nada na minha vida que tivesse medo.., e pronto. Esta aconteceu-me assim.
- Source
- AA. VV., - Lendas e Tradições Evora, EBM's de Guadalupe, S. Sebastião da Giesteira e Valverde, 1999 , p.41-42
- Place of collection
- Nossa Senhora De Guadalupe, ÉVORA, ÉVORA
- Informant
- Manuel Fabrício Coelho (M), 64 y.o., Nossa Senhora De Guadalupe (ÉVORA),