APL 1592 Gens ou Jens

O que eram esses seres extraordinários tantas vezes invocados pelos antigos?
Eram duendes, respondiam uns: fadas, afirmavam outros; mouras encantadas, sustentava muita gente.
 Ninguém o sabe ao certo, embora nas povoações e freguesias de barlavento (frase algarvia que significa a região a poente da mesma província) e muito principalmente nos concelhos de Portimão, Lagos, Aljezur e Vila do Bispo, não há muitos anos, e ainda hoje, falem das gens ou jens.
 A opinião mais corrente naqueles concelhos considera estes seres mouras encantadas. Ninguém as viu nunca, muitas pessoas porém se utilizaram dos seus serviços, sempre valiosos, prontos, e muitos.
 Eram as gens ou jens exímias fiadeiras cantadeiras alegres e folgazãs e muito estimadas pelas pessoas, que lhes deviam grandes serviços e por isso as bem diziam.
 Tinha alguém algum armeo de estopa ou linho para fiar? Não tinha mais que preparar um bolo ou fogaça de farinha de milho bem temperado e cozido nas cinzas do borralho, deixá-lo ainda quente na lareira e próximo o linho que tinha de ser fiado. Deitavam-se, apagavam as luzes e pouco depois ouvia-se o fou-fou, fru-fru dos fuzos e dos sarilhos, rompiam alegres descantes que, conforme a importância da tarefa, duravam mais ou menos tempo, nunca porém além do romper da alva.
 O silêncio que se seguia ao alegre serão era indício de se terem retirado e concluído o trabalho. Então erguia-se a família das suas camas, e encontrava o fiado pronto, ensarilhado e preparado para ir à lavadeira.
 E que fiado! Era imediatamente conhecido por todos o pano que dele se tecia. E fossem dizer à gente antiga que nunca vestira uma camisa, um colete, ou outra peça de vestuário fabricado com tão magnífico tecido!
 Não há muitos anos foi o senhor José dos Santos, proprietário e negociante, do povo da Guia, ao Barão de S. João, aldeia situada em uma campina, em outro tempo freguesia independente e hoje anexa à freguesia de Bensafrim. Dormiu certa noite em casa de uma lavradora abastada, e casualmente caiu a conversação sobre esses seres imaginários chamados gens ou jens.
 A lavradora convencida de que realmente esses seres tinham existência real foi a uma arca e tirou dali uma riquíssirna toalha de linho, cujo tecido era maravilhoso.
 — Aqui está, disse ao nosso amigo, a prova de que esses seres existem realmente. Foram eles que teceram o linho. Minha mãe, uma santa mulher, que odiava a mentira, muitas vezes me disse que fora no seu tempo, em uma noite, que as gens ou jens tinham fiado o linho da toalha.
 E a convicção da lavradora era firme e inabalável.
 O muito reverendo pároco de Budens, José António Monteiro, diz-me numa carta: «Há junto desta povoação um sítio chamado Aderneira onde existem vestígios de uns casarões onde, dizem as pessoas idosas, que habitavam (no sub-solo) umas mulheres, mãe, filha e neta, chamadas as gens ou jens, famosas tecedeiras, às quais o povo ligava grandes simpatias pelo seu caracter benfazejo.»
 E todavia, se estas famosas tecedeiras executava à maravilha a sua missão de fiar, eram não obstante intransigentes com as pessoas, que não deixavam sobre a lareira um bolo que correspondesse à importância do fiado. Havia bolo de um e dois alqueires de farinha de milho. Se eram escassos na oferenda do bolo, somiticos, o linho ou estopa era reduzido a cinzas e os bolos feito em migalhas, misturadas estas com as cinzas para que ninguém as pudesse aproveitar.
 Hoje pouco se fala já das tecedeiras exímias: tendem a desaparecer da memória do povo como quiçá muitas velhas tradições, hoje completamente esquecidas e que constituiram por muitos séculos o entretenimento dos nossos maiores.
 Consignando aqui este capítulo, lavro o meu protesto conta os que não quiseram ou não souberam consignar por uma forma pública essas velhas tradições, esses monumentos grandiosos de uma literatura oral de um merecimento e de um valor importantíssimo na actualidade.

Source
OLIVEIRA, Francisco Xavier d'Ataíde As Mouras Encantadas e os Encantamentos do Algarve Loule, Notícias de Loulé, 1996 [1898] , p.237-238
Place of collection
Bensafrim, LAGOS, FARO
Narrative
When
19 Century,
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography