APL 697 Desencanto inesperado

Vinho verde, parque florido, os seus campos de encanto são o pasmo dos olhos.
Terra de capelinhas brancas ao longe nos pincaros das serras de côr lilás, roja-se aos pés das montanhas e espreguiça-se á beira dos rios. Por os campos tem a poesia das coisas mansas, e as serranias debruçam-se na planicie fértil.
 N’essa belleza da terra houve sempre belleza nas mulheres. E não é aquela de que falla a cantiga, talvez de lá de esses sítios:

O gosto não tem principio,
A’s vezes nio tem de quê;
Gosto de ti, porque gosto,
Gosto sem saber por quê.

Não, é a beleza forte, cai que a sympathia conquista os corações como o sol brilha nos olhos. Amor ou ódio:

Eu a amar-te e a querer-te,
Tu sempre a fugir de mim:
Ainda me hei-de regalar,
Do teu corpo ter mau fim.

 Quando antigamente havia guerras constantes, e os homens tinham de abandonar as suas casas para se irem a ellas, ficavam indefesas as mulheres. Os homens por lá se morriam, outros tarde voltavam. E quantas vczes as mulheres eram roubadas pelos inimigos!
 — Ai que lindas cantigas, — dizia a velha Fulgencia, — que ha n’este Portugal! E as da guerra contra os Mouros! Aquella falla do conde Claros e Claralinda!
 
— “Deus te salve, Clarinda,
Tão, cedo estás a bordar?”
— “Salve-te Deus, conde Claros,
De onde vaes a caminhar?”
— “Aos Mouros me vou, senhora,
Grandes guerras guerrear”.

 — Linda, linda. — commentava o velho mordomo da senhora Marquesa.
 — Lindo, pois não é, Senhor Vicente?
 — Se é, Senhora Fulgencia.
 — E esta?

Estava a bella Infanta.
No seu jardim assentada;
Com o pente de ouro fino
Seus cabelos penteava.
Deitou os olhos ao mar
Viu vir uma nobre armada.
Capitão, que nella vinha,
Muito bem que a guiava.
— “Dize-me, á capitão
De essa tua nobre armada,
Se encontaste meu marido
Na terra que Deus pisava ?”

— “Levava cavallo branco,
Sellim de prata dourada;
Na ponta da sua lança
A Cruz de Christo levavas”.
— “Pelos signaes, que me deste,
Lá o vi numa estrada
Morrer morte de valente;
Eu sua morte vingava —“.
— “Ai triste de mim, viuva!
Ai triste de mim coitada!
De três filhinhas, que tenho,
 Sem nenhuma ser casada!”

 — Mas era falso, — coninuava a Senhora Fulgencia, — o marido era elle, e, quando conheceu, dizia ella assim:

— “Tantos annos que chorei!
Tantos sustos que tremi!
Deus te perdoe, marido,
Que me ias matando aqui”.
 
 A’s vezes, quando os homens regressavam da guerra, não encontravam as mulheres, as irmãs, as noivas. E’ o que lembra a cantiga da Branca-flor.

Chamar-te-hei Branca-Rosa,
Branca-flor de Alexandria,
Que assim se chamava d’antes
Uma irmã que eu tinha.
 Captivaram-na os Mouros
Dia de Paschoa florida,
Andando a apanhar rosas
Num rosal, que meu pae tinha.
 
 Para evitar estes males, é que muitos homens, antes de ir á guerra, levavam as mulheres ás Fadas, que as resguardassem de todo o mal, protegendo-as e encantando-as como as Mouras.
 Em certa povoação do Minho havia um castello velho em ruinas. Não se sabe como, a Fada, que protegeu uma de essas meninas para quem os paes pediam o encanto, não voltou mais. A menina alli estava, á espera que se cumprisse o destino, e alguem a viesse desencantar um dia.
 Pelos arredores o povo andava aterrado com o receio da menina encantada em Moura, com a forma de cobra. Mas, — coisa estranha — a cobra tinha orelhas.
 — E é uma cobra com orelhas, — dizia o povo, como se fossem as orelhas o motivo principal do medo todo.
 Quem é que se atrevia a procurar a cobra! Era um pavor A gente andava em uma excitação continua.
 — Vou lá eu, — decidiu certo dia um rapaz mais animoso.
 E, se melhor o disse, melhor o fez. Agarrou em uma espada forte e afiada. Metteu-se a caminho, serra acima, até o castello, onde esperaria a cobra, para a matar de um só golpe. Chegou e esperou. Por fim adormeceu-se.
 A cobra sahiu do esconderijo, sem ruído. Arrastou-se rapidamente quanto pôde, até perto do rapaz, que a não sentiu. De repente elle acordou com um beijo sonoro na bocca. E, ao levantar-se, acordando de chofre num sobressalto, deu de cara com uma linda moura, curvada para elle, vestida como sabia que andavam as mouras, e a sorrir-lhe com doçura.
 — Que fazeis aqui? — preguntou-lhe elle muito admirado.
 — Quero casar contigo, e já te dei o beijo de noivado! — Foi a resposta de ella.
 — Mas… — ia a continuar elle.
 — Nem mas, nem meio mas, — atalhou a moura, — é casar e prompto.
 — Então?
 —Eu era a cobra. Desencantaste-me, deixando que te beijasse. Este beijo quebrou-me o encanto e entregou-me a tua mão de salvador.
 — Seja! — exclamou o rapaz, ainda mal convencido de toda a scena, e receando uma partida dos amigos, que sabiam da ida e intenções de elle lá acima.
 — Vieste para me matar, deste-me a vida. Vês o que fizeste? — E a moura ia rindo ao fallar.
 Diz-se que realmente casaram e foram felizes. Decerto era uma das que cantavam:

Eu casei me, captivei-me,
Ainda me não arrependi;
Quanto mais contigo estou,
Menos posso estar sem ti.

Source
CHAVES, Luis Lendas de Portugal: Contos de Mouras Encantadas Lisbon, Livraria Universal, 1924 , p.230-235
Place of collection
BRAGA, BRAGA
Narrative
When
20 Century, 20s
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography